quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Canção para um novo ano

Solfejo
o céu e o mar
e a terra
sofreguidão
o nunca circunscrito
desejo insular
da palavra livre
gaivota ébria
que se solta
da espuma
da rebentação
e se torna
noite cintilante
e estrela cadente
fragmento 
de canção 
flor que irrompe
dos pulmões
da terra
ave que acende
a lágrima
no olhar
onde ressoa
de par em par
um sorriso
o abrigo de lobo
acossado
solitário coração.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira




A palavra do homem

Não há 
último dia
para a palavra
sim para o homem
ela sobrevive
a todas as crise
ao gemocídio 
e ao aparatoso acidente
a toda a mordaça
resiste 
aquela que o amor não disse
e a que balbucias terna 
e estenuada
após o dia de trabalho
e ainda todas as outras
embargadas
na dor da separação
e as entaladas na garganta 
da vergonha e da culpa.
Porém, 
pode haver 
um último dia 
para as palavras
quando elas se reúnem
e não persiste o seu eco
ao longo dos séculos
ou da nossa vida
se da sua conjunção
resulta embaciado 
o sentido
e não comungam 
do ancestral bramido 
das ondas incessantes
no colo luminoso do areal
palavras que matam 
e agonizam 
soam a falso
ou são atiradas ao vento
da difamação e da injúria
filhas bastardas da oportunidade
e da circunstância
palavras escolhidas a medo
transidas na sua dificuldade
da compaixão 
e da audácia de clamar por justiça
olhos nos olhos
palavras com prazo de validade
filhas da hábil estratégia 
no mercado do engano
últimas palavras 
murmuradas por moribundos 
extorquidas 
pelos cangalheiros
que parasitam as ideias dos outros
quanto tempo dura
quanto vale 
a palavra do homem
de palavra
já muito pouca gente sabe
com todo este ruído
à nossa volta
fomos desaprendendo
o seu valor
e já nos vão faltando
as palavras
para o dizer.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira


"O homem é um ser que se criou a si próprio ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si próprio."
Octavio Paz




terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Paisagem para um dia de Natal



Subiu de novo ao Castelo de Porto de Mós, não conseguiu abrir a porta da fortaleza, por ser feriado, cinco andorinhas esquecidas, andavam às voltas, entre ameias, varandas e torres, nem por elas ali existirem se vai acabar este Inverno.
O sol brilhante, ajudava ao cinzento claro das serras que era ali e acolá manchado do verde escuro da urze, do tojo e outros arbustos.
Num contraforte a Sul, na Serra dos Candeeiros, a ferida exposta a céu aberto de uma pedreira. As torres da energia eólica lembraram-me um pouco D. Quixote com todas as alegorias e cruzadas que têm hoje, de renovável e de sustentabilidade.
Ao lado do rio Lena, um encontro épico, o cansado Rocinante confraterniza com o cavalo resfolegante de D. Fuas Roupinho que se tinha apeado, para descansar um pouco, depois das peripécias do Sítio da Nazaré. O rio da sua infância, já não corre, cada vez mais cercado de canaviais e salgueiros, lá continua o seu incessante voltejar pelos vales, até à vila da Batalha.
Ali por debaixo do castelo, uma pequena máquina amarelo torrado, roncava inquieta
no pequeno cemitério contíguo entre o branco e negro dos jazigos e das campas,
lembrando-nos que também se morre no dia de Natal.
Lá à frente a Central Eléctrica recordava tempos de fome, de pneumónica e de carvão.
Ali em frente, o velho edifício da cadeia comarcã que teve os seus melhores momentos,
nos piores de tantas almas mais ou menos tresmalhadas e penalizadas.
Na esquerda baixa, a velha Igreja de S.º João discreta com suas árvores ao redor, que se revelaram entre serem sombra de brincadeiras ou de oração, o Largo do Município logo a seguir, onde desaguava a procissão do Senhor dos Passos com seus calvários e cruzes, seus anjos de asa caída ou remendada, aromas de ramos de flores que se matizavam com o cheiro a naftalina de trajes e fatos ressuscitados.
Enfim, lugares de memórias que daqui abarco e ao longe, as casas brancas escondidas
e coroadas, entre os pinhais e o ouro das folhas de carvalho a sua aldeia, os pomares que se estendem ainda, pelos vales em tronco nu, os vinhedos que descem pelas encostas, agora amarrados às pautas de fios onde se penduram, em efémero equilíbrio, os trinados dos pardais.
As terras abandonadas vão sendo ocupadas por silvados e vão desaparecendo caminhos, entre as promessas futuras de amoras e as fugas esbaforidas de coelhos bravos, para os esconderijos do passado. Daqui vislumbras pois esta Europa a que chegámos, esse último pesadelo que já foi sonho que acalentamos.

Tojal, 25 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

Amar em apneia

Deixo-me 
ficar aqui deitado
no fundo do mar
a ouvir-te 
a tocar-te no âmbar 
dos ombros
búzios
onde a sonhar 
adormeci

as águas vivas
ascendem 
almas penadas 
errando
ávidas 
pela superfície 
das coisas
e pela espuma 
dos dias
enfeitiçadas
pelo meu alaúde

com a luz 
da manhã
vejo as sombras 
passar
como se fossem 
nuvens
ou serão
tuas mãos
inatingíveis

testemunho
a queda repentina
de outros náufragos
a borbulhar
ao meu lado
todos os dias
oiço o estrondo
de tantos
companheiros
caídos 

sigo 
sem ver o horizonte
os navios com suas quilhas 
de rasgar a solidão
e remos aflitos 
contra a corrente
estendo as mãos
devagar
de único Deus
que pode amainar 
a tempestade

oiço
o ruído abafado 
profundo
do tráfego
as buzinas 
num estrépido
de incontida 
emoção
nas areias movediças
da cidade 
submersa

tudo se subverte 
na música
minimal
das ondas 
que se despenham
incessantemente
no ouro da praia
e por fim tudo 
se submerge 
e fica preso 
à pesada âncora
do silêncio

o assobiar 
das baleias
assinala o rumo 
do seu enorme 
coração

as conversas abafadas
obedecem
aos preliminares 
dos grandes golpes
e dos pequenos gestos
com que devem amar 
os peixes timídos
e resplandecentes

peixes translúcidos 
no seu azul turquesa nómada
interlocutores 
da utopia 
e dos mistérios indecifráveis
que jazem 
nos grandes abismos
esgueiram-se atónitos
perante a minha invulgar presença 
submarina e atenta
à evidência sufocante
de não escapar à morte

os grandes predadores 
rondam
na esperança
do sangue vermelho e quente
e da minha cumplicidade
de morto vivo
e exploro 
a minha grande gargalhada
silenciosa
debaixo de água

respiro agora penosamente
acreditando
que o halo de luz que penetrou
nas águas salgadas
vai acender os candeeiros de sal
e de insónia
definindo definitivamente 
a eternidade 
dos contornos do teu corpo
que mergulhou corajosamente
até profundidades
onde a pressão 
da ausência do amor
torna impossível
a humana existência

noto de novo em ti 
o instinto animal 
e a etérea presença
que te conduz
à serena aquiescência 
é a tua voz
que a mim me seduz
barco à vela 
que surges nua
à vista desarmada
no periscópio
do meu desejo
a contraluz
ou será 
da falta de ar
que te atira
contra o recife
na apneia
de um desencontro
à superfície.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Uma vida a preto e branco


As zebras pastam
pelo cercado
naquele gesto 
ancestral
inconformadas
da aridez
na terra batida
desta sua vida
que muito embora
pouco colorida
por elas sempre fiquei
embevecido
dado o equívoco
recorrente e pueril
se eram as zebras
às riscas pretas
pintadas de branco
ou vice versa.
Lisboa, 24 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido

Gorila na bruma


Hoje
era um bom dia
depois que se levante
o nevoeiro
para ir ao jardim zoológico
espreitar
o sol soalheiro
que se podia reflectir
naquele gorila
de pêlo dourado
a estender as mãos
para o amendoim
entre as barras
e a ferrugem
de ferro forjado
da sua jaula
e na leveza do fruto
naquela troca
de olhar
de incrível humanidade
fixo em mim
distingo
como fico preso
à ligeireza
explícita
das metáforas
à bruma da memória.
Lisboa, 24 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira


Imagem de GORILLAS IN THE MIST, Sigourney Weaver, 1988,

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sopa de letras


Ali aos Anjos
na Almirante Reis
engordam as filas
na sopa dos pobres
hoje feita
de massinha de letra
perante
os olhos encovados
e barbas
de vários meses
dançam coxas
e miúdos
de galinha
uma “canjinha”
de poemas
envergonhados
de pobreza
acompanhada
dos cachorros
escanzelados
de todos os dias
têm em comum
esgravatar
numa tristeza
húmida.

Lisboa, 22 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira



Foto de autor desconhecido

domingo, 21 de dezembro de 2014

Retrato de uma mulher só à porta do Inverno


O frio
tem para ti a grande vantagem
de nos tornar filósofos
invejas o poder dos metereologistas
que acompanharam o bailado
das deslocação entre as altas e as baixas pressões
da tua vida
procuras perceber a resignação
dos homens que amanham a terra
e lançam a semente
esses facilitadores diários do futuro
e daqueles que quando não tem mais nada
para dizer
falam do tempo
que enrijece os ossos
desencantados no eterno regresso
à sua infinita fragilidade
o vento assobia lá fora
na rua deserta
onde tudo se faz numa democracia
de dois sentidos
dormitas embalada
tu que gostavas de dormir
e agora só descansas
longa vigilía sem porquê
e entregas-te
a esse enorme vazio
de emoções
esperas para amanhã
aquilo que nunca se podia
ter feito hoje
espera-se por temperaturas mais elevadas
e pelos melhores dias que virão
com uma pequena manta de viagem
por cima das pernas
pensas
que caber-te-á
fazer um dia
o papel de pó e também de vento
de lamber as feridas
de fazer a música
nesse inusitado acordeão
feito das arestas das esquinas
do vibrar do alumínio das marquises
e do ressoar nas frinchas mal fechadas
das vidraças
um dia irás morder o pó das estrelas desfeitas
e que te foram prescritas
em forma de cápsulas para baixar a tensão
irás desvendar a noite em passo de fantasma
tornando-te brisa mansa na madrugada triste
agora sorris
enquanto aguardas sentada a ternura de um porvir
que torne um pouco mais luminosa
a tua tranquila solidão de estufa
onde sem querer
te aprisionaste a ti e ao tempo
onde nada acontece
nem frio
como se a morte
essa última quietude
estivesse chegado sem dares por nada
e sem te mexeres
lutas pela sobrevivência
respirar
é pois esse o teu último desafio.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira


“A Room in Brooklyn”, 1932' de Eduardo Hopper "o pintor do silêncio"

Breve inventário



Este ano 
o artigo primeiro
foi o teu olhar
onde reencontrei 
aquela vertigem de assombração
que me deixava com falta de ar
esta pontada
que penetra no coração
devagar
depois o número dois 
foi aquela mensagem subliminar
de um planeta que pode desaparecer
sempre foste melodramática
desde que gravito à tua volta
em terceiro lugar
a constatação de que da leitura de sinais 
múltiplos e inquietantes
que há animais muito mais evoluídos
que muita gente
e de quem gostas mais
o que não é nada surpreendente
anoto numa outra rubrica
que este ano
cresceram o número de pobres 
e daqueles que não tem 
nunca tiveram nada para dar
digladiam-se as estatísticas
umas rezam que há mais nas esquinas
e outras nos cruzamentos
este ano têm menos para receber
pois muitos estão mais pobres
pelo menos agora saímos dessa pose soberba
da misericórdia do teu olhar
e sabemos melhor o que é isso
de não ter um mínimo de subsistência
um método pedagógico mais ortodoxo
num outro item dei a devida nota
de que há uma curiosa unanimidade
no perigoso avaliar dos deslumbramentos
que amenizam e nomeiam de farta a realidade
e enaltecem a pobreza da fição
apraz-me ainda registar
que foste de novo fazer voluntariado
sentes-te mais leve quando 
vais ajudar os outros
olho agora para este documento 
que faz prova da tua vida 
coberto de carimbos de tinta permanente
azul e preta
passaporte para uma nova fronteira
da nossa existência
e que nada vale 
este sudário encharcado do dia a dia
e de imaginário
continuam tristezas e cansaços 
tudo se apaga cá na terra
os desmandos e a enorme incapacidade
de sermos racionais
quem te manda a ti sapateiro
gastar o que não tens
tu tinhas avizado 
sempre foste muito mais prudente
e a indesmentível desgraça de tantos
vista à lupa através do crédito mal parado
apontado que ficou e sublinhado
mudas de conversa
mostras-me aquela estrela do mar
de quem devia acreditar
na filha que a foi buscar ao fundo
de si própria para te dar
continuas com essa colecção de coisas
que só para ti tem valor
por fim 
para memória futura
apontas mais uma cicatriz
que um objecto doméstico te deixou
e neste inventário nenhuma referência
à tua contundente competência em ferir 
aqueles que te amam
e tu ficares incólume
tu nunca te vais dar conta
tu és analfabeta
nesse jogo mortal 
do deve e do haver.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Amar sai caro!

Amar sai caro

O custo de vida
a aumentar
o amor não aguenta
deixou
de ser prioritário
é descartável
saiu da agenda
é um detalhe
é circunstancial
podemos amar
se não temos
mais nada 
estejamos atentos
é necessário
mais planeamento familiar
que fazer em primeiro lugar
devemos pagar
as nossas divídas
cumprir as nossa obrigações
fazer o diagnóstico
não nos podemos
dar a esse luxo
de amar
despudoradamente
por qualquer motivo
qualquer lugar
e a carreira 
o desempenho
e as regras a segurança
o equilíbrio e o futuro
temos de estabelecer
prioridades na vida
este não é tempo
para sonhar
temos de ser
pragmáticos
estar com os olhos
bem abertos
pé em terra firme
sensatez
quanto custa
quanto nos rende
amar sai caro
está pela hora da morte
sempre vezes dois
é tempo de sobreviver
sejam românticos
depois
amar é para quem
não tem mais nada
para quem pode
para fazer
para os desgovernados
para os loucos
quando muito 
façam alguma poesia
sem exageros
perde-se algum tempo
mas sai mais barato.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira



sábado, 13 de dezembro de 2014

Dias de bruma III



Levanta-se agora
o nevoeiro
sob a cidade
deixou um manto
de silêncio
as palavras
saiem da boca
de vultos
embrulhadas
de vapor
como se fossem
poemas
de algodão
acompanha-as
o subtil crepitar
em que se desfaz
a espuma
e a brisa
imperceptível
do bater de asas
da pomba 
da paz.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira



Dias de bruma II



os candeeiros
são flores bruxuleantes
nas ruas da cidade enevoada
fecho os olhos e sonho
o estame incandescente
do teu beijo a incendiar 
a seca e gretada 
solidão dos meus lábios


Lisboa, 13 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

Dias de bruma I



o nevoeiro 
abate-se sobre a cidade
a luz diáfana
que resiste ao fundo 
do túnel da rua
adquire os contornos
do teu rosto
vivo nesta cegueira
de te ver
em todo o lado

Lisboa, 13 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Cancioneiro cínico ou baixo relevo para este Natal - V - A pressa de chegar e de partir



o tráfego prossegue
aos repelões
com um fingimento
da pressa
de quem
não vai a nenhum lado
nas suas inesperadas
pulsões
nestas alturas
é de bom tom
enaltecer
os cínicos do planeamento
tu ficas por aqui
nesse êxtase
nesta estupefação
perante a voracidade
do caos
e o desemprego
de longa duração

alguns aproveitam para fazer amor à hora de ponta

Lisboa, 12 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

Cancioneiro cínico ou baixo relevo para este Natal - IV - A dúvida existencial dos manequins


tiritam
em todas as montras
toda a espécie de manequim
piscam-nos o olho
há um preço
de saldo
para o vazio
sorriem
nós os que andamos
cá por fora
nesta liberdade
vigiada
igualmente
expostos
ao preço de mercado
liberalizado
fechamos os olhos
duvido
se isto é equilíbrio
mais me parece
resignação


em defesa do pequeno comércio 

Lisboa, 12 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

Cancioneiro cínico ou baixo relevo para este Natal - III - A sombra mínima dos espaços abertos


passos 
apressados
transportam sombras
e medos e silêncio 
dá-se ênfase ao frio
já vais chegar tarde
já os espaços se tornam mais longos
e as distâncias nos abraços
acrescentam mais ausência
há mais subtileza nas sombras
e anotas mais tristeza no silêncio
e já sentes os calafrios do esquecimento


devagar nem sempre se vai longe

Lisboa, 12 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Cancioneiro cínico ou baixo relevo para este Natal - II - No seu peito vive uma ave e uma pedra


no crepúsculo
já há muito desistiu
um pássaro
num equilíbrio efémero
eléctrico
no fio
de onde caiu
de pedra
e agora o seu canto
é de arestas
afiadas
nas orquestras
de vento
e o seu voo
a prolongada raiva
da tua mão
pedra ou ave
tu és a minha ferida
aberta no tempo

e quem não pecou que atire a primeira pedra

Lisboa, 11 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira


Joan Miró
"Personagem atirando uma pedra a um pássaro"
1926
Óleo sobre tela, 73x92 cm
The Museum of Modern Art, Nova Iorque

Cancioneiro cínico ou baixo relevo para este Natal - I - O desabrigo da sombra


a noite arrefece
não há uma estrela no céu
que estremece
nem um peixe no rio
que se esquece 
na corrente
foram todos para casa 
mais cedo
tu ficaste
ninguém sabe
se a tremer de medo
se de frio
sempre ficaste 
à espera 
no escuro
de dar luz
ou que te encontrasse
um poema navio

o que não nos mata torna-nos mais fortes

Lisboa, 11 de Dezembro de 2011
Carlos Vieira


Poema presépio



Uma cadela vadia
de rabo entre as pernas
invadiu o cenário
e alçou a perna
numa ovelha de porcelana
tresmalhada
meteu o focinho
entre o musgo e o algodão
do presépio
e seguiu a estrela
de barro quebrada
corre e ladra de alegria
descobre
que cada gruta
estava prenhe de poesia
que ali nasce 
o milagre da criação 
o homem que vai morrer
e renasce
como se faz novo o dia
do mesmo barro
da mesma fria luz
agora em agonia
neste presépio
do mundo
onde supus
no meu imaginário
aquela cadela
escanzelada
percorria
fugindo
de uma qualquer
Judeia
ao encontro
de um novo mundo.

Lisboa, 11 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira




segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O presente



O frio é seco
vai até ao osso
faz bater o dente
ao abrigo das arcadas
oferece-nos o humano 
embrulhado no presente 
na respiração ofegante 
dentro da caixa de papelão
com a oportuna menção
FRÁGIL!
podia-se acrescentar
NÃO INCOMODAR!

Lisboa, 8 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira



sábado, 6 de dezembro de 2014

O amor sem sentido


Os meus lábios 
contornam
a crista da indescritível
da perfeita
ondulação 
dos teus ombros
rumo ao delírio
da visão
dos teus mamilos
onde os meus dentes
moderam
os murmúrios do desejo
a minha boca
regressa ao precepício
que se inicia
por detrás do teu pescoço
após o rumor da palavra
ciciada
mordiscas-me a pele
os teus olhos fecham-se
para que possas
atravessar
o caminho do amplexo
dos meus braços
e nessa gruta 
do desassossego
onde deliberadamente
nos perdemos
avança minha boca
e tuas unhas 
pelas nossas costas
e pelos pequenos
vulcões dos poros
escorregamos
na insensatez
e no perfume 
reconhecido
na pele molhada
tuas mãos ávidas
da minha rendição
de que mergulhe 
erecta a lança
que o mundo desvaneça
e o pequeno hiato de luz 
seja a única tristeza
que permaneça
e por fim se desfaça
a nossa vigiada
solidão
nos dedos que me calam
e que beijo
no epílogo de ternura
e do amor renovado
na volúpia saciada.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira


Magritte - "The lovers"

Apontamentos erótico-poéticos / Incidentes bocágicos I



Toda a gente sabe que Elmano " o ladino" gostava de cagar de alto e terá comentado
que alguém debaixo da figueira, até pelo traseiro, o "cu-nhecia", diga-se, por aquela passagem que se tratava de um profundo "cunhecimento", do lado mais escatológico
do poeta.
Aliás, este amarinhar de árvores, servia-lhe a dois tempos. Num primeiro momento, para o aliviar de necessidades, num segundo de inspiração, à sua veia poética, de ave mais lírica pousada no seu ambiente.
Terá contado certo "espreita" que quando o bardo para ali estava de pirilau ao léu, após noite de maior moina, se terá aproximado um bichano lambareiro que, por milímetros, não se alambazou da pendente parafernália, e não fora um estremecimento súbito
o ter desequilibrado, fazendo-o cair, qual maçã podre e o lúbrico escriba, ver-se-ia destituído de alguns dos seus mais relevantes argumentos, por vezes, para a sua prosápia e verborreia e outras, para tão distinta grandiloquência.
Nesses tempos em que instalou forte polémica entre os que defendiam a sátira mordaz e certeira, em contraponto com o ritmo da lírica límpida, comentava-se por alcovas e lupanares, agora só Bocage nada de Camões, os defensores de uns e outros, digladiavam os mais arrevesados argumentos e diz quem viu que muitos acérrimos defensores dos poetas, terão chegado a desembainhar os bacamartes e chegado mesmo a vias de facto.
Rezam os "anais" que Elmano esse descaradão moreno passeava o seu esplendor, já decadente, pela Avenida Luísa Tody e que certo dia no lusco-fusco, foi puxado o vate pelo gibão, para as trevas de um beco, por mão com energia e pêlo de urso, essa força da natureza, por certo pouco sensível às sátiras, ali lhe atestou tamanho "enxerto" que nas semanas seguintes ficou de molho, lambendo as feridas e sem poder pegar na pena.
Tal tenebroso evento, levou a que se afastasse dramáticamente da dama que até ali, lhe tinha ocupado, entre outras coisas as meninges e que tinha adornado as daquele colosso brutamontes que desconhecia as ambivalências e a falta de oportunidade das grandes paixões que o devastavam e o deixavam cego. 
Agora com um olho "à Belenenses", ficou com o miserável aspecto e semelhanças do famigerado autor da epopeia, que elegeu como inimigo fidagal.
 

Lisboa, 5 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira





De volta de cartas de "amarear"



No promontório
apontei o sextante
a tentar medir
o impossível
essa distância
entre as estrelas
da constelação
a que pertences
enquanto
nos aproximamos
do zénite
vertiginosamente
desse prazer
sideral
que é regressar
ao ângulo 
de um total
desconhecimento
tendo teu corpo
por horizonte.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Invocação do seu nome em vão




Dizem os teus lábios
e calam-se
falta-lhes o ar
e todos os animais
correm para os abrigos
face aos beijos
que se adivinham
que se seguem
desconhecendo territórios
no canto
que nomeia
os objectos familiares
ao adquirirem
estranha luz
eteriedade
vão ocupar o inóspito
despedindo-se das mãos
da ternura
que testemunham
nos recantos
nas prateleira douradas
na sua nudez
tolhidos em silêncio
no exílio dos pequenos espaços
onde reinam
em crepúsculos mínimos
aguardam
que os teus lábios
os poupem às línguas 
de fogo
que esvoaçam
em que se transformam
as palavras
que os invocam
preenchendo 
o vazio
enquanto 
o sopro da tua boca
faz desaguar a noite
perante o espanto
estampado
no teu rosto
alucinando.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

Com seus dedos...

Com seus dedos 
agora gretados
tinha arrancado 
pungentes harpejos
das pautas
de arame farpado
plangendo
acompanhado
pelo coro de um rebanho 
dos pensamentos
encurralados.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

domingo, 30 de novembro de 2014

O peso da palavra



Palavras
substâncias
decompostas
grude de construir
a mobília 
e a casa
constelação 
de pequenos átomos
debaixo dela
vais dormir
nas noites
em que fojes dos dias
e aí forjas
essa argamassa
de tempo 
de efémero
onde perpassa
o murmúrio
de um lençol de lava
de música vulcânica
e tu exortas
a voz interior
o deslumbramento
e o etéreo
fixas o pigmento
que perseguiste
após
o segredo
desencontrado
no pó das palavras
esquecidas.

Lisboa, 30 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Uma pequena transgressão




Aguardas
no sofá da sala
que o bicho da palavra
por dizer te devore,
lá fora 
instiga-te a sair
o sol exacto
de Inverno
e o ruído mecânico
das ondas 
dos automóveis,
desces pela 
suave melancolia
do elevador
sem qualquer
interrupção
de um "bom dia!"
de um vizinho
madrugador
pões a chave
na ignição
e escutas 
a resposta familiar 
do motor 
da viatura
sempre disponível
para te levar
a algum lado
sem te pedir nada
nem uma palavra
esqueceste-te 
de ti e do cinto
em qualquer
esquina
podes voltar 
a transgredir.

Lisboa, 30 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



sábado, 29 de novembro de 2014

Poema de uma ave à chuva



Uma ave
arde 
devagar,
define
a árvore
entre
a névoa,
o canto
é agora
água
límpida
regato
a deflagrar
o espanto,
paira
uma miríade
fosforescente
de luzes
de vozes
reinventando
a lua e o luar,
palpitando
à flor da pele
amordaçada
os esquecidos
os timídos
e os sós,
e assim
lhe permitem
respirar
depois do medo,
das penas
e que se possa 
decifrar
a mensagem
implicíta
no tamborilar
da chuva,
a sua ternura
ingénua
minimal
e a insensatez
que alaga 
as ruas lá fora
e que cai 
batendo asas
dentro de nós.



Carlos Vieira

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Não há outro país...

Não há outro país, onde me sinta tão próximo da Guerra das Estrelas como na Holanda, cruzam-se pelos mesmos espaços contemporâneos ou de há vários séculos, gente dos mais diversos planetas e tribos, onde os mais sagrados e inconfessáveis interesses se vislumbram. Até as duas rodas de bicicletas, dão às cidades, a voluptuosidade características dos movimentos das naves. Sento-me numa esplanada a deglutir "poffertjes" e sinto-me revigorar, pronto para rumar a outra galáxia, apesar do primeiro ataque, em que vi estrelas, daquilo que no meu diagnóstico amador, pressinto ser "dor ciática", resultado de outras guerras e porque tudo se paga cá na Terra.

Haia, 26 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Mais um eterno reencontro ou retorno



O meu eterno retorno
é á praia de Scheveningen
a um céu azul claro 
para quem não sabe nadar
de perigosa inclinação
e nuvens de algodão desfeitas 
no mar do Norte 
hoje numa estranha quietude
no ouro do areal a perder de vista
onde sussurram
estas gaivotas breves 
solidão em branco e preto
de um ou outro casal 
que aqui vêem recuperar as forças 
depois do amor ou do desamar
sem fazerem ondas
vão ver-se junto ao mar 
quase morto
já agora experimentam 
a tempertura da água
enquanto recordo um dálmata
a brincar com um corvo
reafirmando as boas relações
entre espécies
atirando-nos areia
para os olhos
na praia de Schevenigen
onde morreu meu pai
com mais precisão
foi aqui que recebi a notícia
da sua morte
agora encontro-me sempre com ele
quando aqui volto
e a partir dessa memória
de dor atormentado
renovo a minha crença
na humanidade.

Scheveningen (Haia), 26 de Novembro de 2014

Carlos Vieira


terça-feira, 25 de novembro de 2014

Escrever friamente e em claro


a folha branca
a noite em branco
o tampo da mesa
em branco
na minha cabeça
uma branca
o meu mundo
coberto
de um manto de neve
do gelo da inacção
apenas as formigas negras
das letras avançam
em pequenos grupos
nos antigos trilhos
desafiam a inóspita superfície
atravessam esta gelada desolação
que de mim se apoderou
que nos conquista
e choramos agora sobre o leite
derramado
que nos invade
o delimitado campo
A4 da escrita

Lisboa, 25 de Novembro de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Estratégia da aranha III



Por um fio
que nós tecemos
estamos presos
suspensos
sobre o abismo 
de um tempo
que lento
nos devora.

Lisboa, 23 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

domingo, 23 de novembro de 2014

A estratégia da aranha II



De um recanto
abarco agora todo o aposento
teu corpo
que arde em lume brando
sobre o sofá
teu olhar liquído
e tuas mão lívidas
que aqueces
na chávena de chá
já vivi suspenso num abat-jour
a derramar a luz
sobre os teus pés
e na áurea melancólica
da tv ligada
de onde escorre uma ladainha
que tu não ouves
nem vês
já me debrucei
sobre o abismo
dos quadros dependurados
tão profundamente abstractos
na solidão dos teus porquês
já habitei por dentro
do preto e vermelho
alimentando-me
dos vagos mistérios 
que guardas num móvel chinês
já esperei pelas tuas mãos
naquele centro de mesa africano
e pelos teus lábios
a beijarem
a fruta fresca dos arrabaldes
e o poema pode ser a teia
que será uma luminosa compilação
dos teus pequenos gestos
domésticos.

Lisboa, 23 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



Estratégia de aranha I






Entre mim e a rua
há duas ou três flores interiores
com quem nunca troquei palavra
uma delas é artificial
sem alma 
e está sempre nua
descobri há pouco tempo
não lhe sei o nome
de qualquer forma 
este é muito redutor
na lateral da grande janela
da sala
no exterior
como se fossem escorraçadas
mais algumas flores
a minha ousadia é lançar
o fio do olhar
que atravessa a rua
e do outro lado
outros jardins interiores
a mesma indiferença
e anonimato
a aranha furtiva
tece por dentro de mim
um poema de noite e de sol
onde alguém tropece.

Lisboa, 23 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O meu cavalo baio contra a solidão I



Ali estavas
na tua velha casa
sem os lustres doutros tempos
quase em ruínas
dali vislumbras
as árvores de pequeno porte
cabeleiras desgrenhadas
loucas e esparsas 
pela campina
que o crepúsculo e a névoa
tingiu de pratas e ouros
a acentuar
o azeviche dos touros
contíguos aquela quietude 
e à sua solidão
e ao seu cavalo baio 
no cercado
desfere coices no vazio
e desmente-lhe diáriamente 
o abandono
quando salta pela janela
entra na sala
e lhe vai comer à mão
saliente-se-lhe o cuidado
de deixar os móveis
incólumes.

Lisboa, 17 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


sábado, 15 de novembro de 2014

Duke Ellington e Haruki Marukami



"Já não sei de nada - confessei. - Sei que não me quero separar de ti. Ao mesmo tempo, contudo, não se se é essa a resposta correcta. Nem sequer tenho a certeza de conseguir escolher. Escuta, Yukiko, tu estás aqui. E sofres, bem vejo. Sinto o calor da tua mão. Existem, porém, coisas que não se podem ver nem sentir. Como, por exemplo, as emoções. Ou as possibilidades. Coisas que aparecem vindas do nada e se entrelaçam umas às outras. E vivem dentro de mim."



"A sul da fronteira, a oeste do sol", de Haruki Murakami


Duke Ellington e Haruki Marukami



"Já não sei de nada - confessei. - Sei que não me quero separar de ti. Ao mesmo tempo, contudo, não se se é essa a resposta correcta. Nem sequer tenho a certeza de conseguir escolher. Escuta, Yukiko, tu estás aqui. E sofres, bem vejo. Sinto o calor da tua mão. Existem, porém, coisas que não se podem ver nem sentir. Como, por exemplo, as emoções. Ou as possibilidades. Coisas que aparecem vindas do nada e se entrelaçam umas às outras. E vivem dentro de mim."



"A sul da fronteira, a oeste do sol", de Haruki Murakami


Soldo...

soldo 
as palavras
com cuspo
e atiro-as
à cara
dos traidores

Lisboa, 14 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

O ferro a vapor...

O ferro a vapor
a vincar
o colarinho
depois desliza
pelo tecido
restante
a seguir
demora-me
no teu olhar
e despertas
com o cheiro
a queimado
da camisa
no peitilho
ao nível
do coração.

Lisboa, 14 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Nada na manga...

Nada
na manga
nada no colarinho
sem truques
de esquerda baixa
tudo jogo limpo
sem cartas marcadas
usando apenas a ilusão
da luz velada 
e de asa de sombra
da força excessiva
que te torna frágil
e da preciosidade
imaterial
dos interesses
que nos desconcerta
caleidoscópio de imagens
de encantantatórios
afectos
que nos invadem 
e moldam o espírito
e que por vezes
nos atrevemos
a chamar poesia.

Lisboa, 14 de Novembro de 2014

Carlos Vieira 

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

No meu portfólio


No meu portfólio
levo o sorriso
 a espraiar-se no teu rosto
flor bruxuleante
que fere
o azul metálico
no céu do barlavento

no meu portfólio
arquivo
as tuas mãos
molhadas
no ninho do teu colo
em silêncio pousadas
depois de me libertarem
do caos
com teu enleio
soltando as cores e os aromas
de um qualquer jardim

no meu portfólio
existes quando
desces a alameda
dos sonhos
com aquele vestido negro
e de braços nus
e tu atónita
embevecida
a ouvir um violino
estremecias
por cada nota em falso
que divergia
a cada tinir de moeda
que num boné
caía

no meu portfólio
ainda te reconheço
a preto e branco
tu que ali vais
em paralelo
sem nunca te encontrares
com aquele rio escuro
por sua vez
o rímel descia
pelo teu rosto
máscara
de uma alegria húmida
que se foi desvanecendo



no meu portfólio
do meu desvelo
tenho neste envelope
um pedaço de ti
recordo-te
teu cabelo castanho
em desalinho
depois de um confronto
inesperado
com o vento
sobes rua acima
focada em resolver
definitivamente
aquilo que por ti própria
nunca poderias
conseguir
fora de ti

no meu portfólio
guardo ainda
naquele retrato
límpido
esse olhar
onde descansei
que nos iria
levar para dentro
da gruta
das nossas Mil e Uma Noites

no meu portfólio
não posso esquecer
que trago protegido
das intempéries
e dos fragilidades
dos momentos
a imagem fulgurante
de quando me esperavas
na esplanada em tons de sépia
pássaro do eterno
desassossego
inquietação
de qualquer lugar

no meu portfólio
este flagrante
de quando chegavas
à estação do Parque
um pouco descuidada
indescritível
era porém a tua ternura
subterrânea
apanhávamos
a última carruagem
e o teu corpo desesperava
pela avidez
de uma haste de sol

no meu portfólio
a lanterna
do arrumador
encontrava-nos
num recanto
da terceira fila
do enlevo
de amor recente
com o brilho  
do foco de projector
por cima das nossas cabeças
a atravessar o tempo
os gestos mínimos
da cumplicidade máxima
de um desejo sem tecto
adolescente
das legendas a embaciarem
e o fogo dos teus lábios
a enxamearem
a última sessão de um filme
que para sempre
havíamos de desconhecer
o final

no meu portfólio
aquele fragmento
de mar cortado
pelo picotado
numa praia de inverno
ali perto
e nós presos pelas garras
de uma paixão
sem piedade e sem espaço
éramos sobrevoados
por toda a imaginação e asas
de gaivota
num ruído ensurdecedor
de sangue
e grasnidos polifónicos

no meu portfólio
por vezes
chega-me à memória
o cheiro a resina no pinhal
a que se sobrepôs
o néctar
decorrente do teu corpo
a desenvoltura 
das tuas pernas brancas
e dos pinheiro verdes
a rodopiar
a rima
das feridas nos troncos
e da insondável solidão
de musgo
no percurso insaciável
dos meus dedos

no meu portfólio
ali estavas
na tua beleza inacessível
de estátua de alabastro
com sonhos de aurora boreal
nunca te compreendi
nesse dialecto
de deusa
que atravessou todas as noites
da minha recorrente utopia
e se te abracei depois
se sobrevivi
neste fotograma
da eternidade
no cloridrato de prata
foi porque
já não tenho medo da morte
e cego de olhar o sol
e na partilha
de uma inadiável demência
nos possuímos
num inexplicável  infinito
a dedilhar carícias.

Lisboa, 13 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


“Fragmentos de vida”  de Marta Orlowska


terça-feira, 11 de novembro de 2014

folha 5



de folha caduca ou perene
qualquer que seja
na superfície da sua pele
pode ler-se e ouvir-se sempre histórias
de assombrações e fotossíntese
nos intrincados deltas
das nervuras
na subtileza dos filamentos
de penugem
iluminados pela alegria tranquila
dos subterfúgios de clorofila
delimitadas
pelo desastrado recorte
ou delicada renda
que os crepúsculos
desenham
a borboletear ao sabor da brisa
enquanto se insinua
um perfume
onde se amansa ou se precipita
a irracionalidade de todos os animais
ecoa a sinfonia
que irá antecipar o rumor dos pássaros
e deflagrar seu canto emboscado
na solidão das copas
e no desespero dos troncos
que se contorcem
conforme é perene ou caduca
a folha de árvore
em que se vive
pega-lhe pelo pecíolo
como quem ergue um poema
e na sua leveza
olha-a em êxtase
na contraluz
rendido
confessa-lhe
os últimos versos

Lisboa, 11 de Novembro de 2014

Carlos Vieira


folha 9


a parra
que esconde o sexo
enrubesceu
Lisboa, 11 de Novembro de 2014
Carlos Vieira

folha 4


falta-nos
a respiração
perante a beleza
e o perigo
dos elefantes
a andar de nenúfar
em nenúfar
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


folha 3


a folha
de plátano
que foi lança
vermelho vivo
resistente
voou da árvore
e foi na dança
amarelo torrado
agora aos tombos
em agonia
desce a escada
íngreme
feita farrapo
exangue
talvez
o vento
lhe pegue
e a leve
até mão
de criança
que a adormeça
no herbário
junto da família
do limbo
das lanceoladas
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


folha 2


três seixos vermelhos
e uma folha verde
pequenas artérias 
e poros de luz
reinventam o mistério
exorcizam
toda a obscuridade
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Folha 1




esta folha de oiro caída
é língua morta
que o vento gurgita

efémero insecto
que exausto transporta 
a página do inverno da vida

lâmina calada
que um silêncio afiado
de nervos e filigrana exorta

rasto na estrada
perdido no desassossego
bandeira derrubada

Lisboa, 9 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


domingo, 9 de novembro de 2014

Palavras com significado

O artifíce
da palavra
ausculta
um desconhecido
sentido interior
murmura
consigo próprio
o desconforto
da viagem
cuida
da imperceptível
ternura
que percorre o ar
que as liga
as palavras escolhidas
e as que renova
e nas suas sílabas
vai crescendo 
em fogo lento
a raíz 
do canto
de um pássaro
que se tornou
a árvore
e a sua sombra
e adquirem o ritmo
da chuva caíu
na boca sequiosa
e naquela expressão
seca
nasce o rio
que corre
mais do que o grito
por um novo leito
e a partir
das suas margens
vai inaugurar-se
o crepúsculo do diálogo
onde os peixes
são versos soltos
que roubaram
a luz das estrelas
e agora o poema
está coberto de escamas
tornou-se armadura
de um poeta guerreiro
que voltou da batalha
da busca lapidar
da essência das palavras
e do silêncio
ao recolhimento
que o faz regressar
à descoberta 
de um outro tempo
a reclamar um valor novo
para a vida
dos que não tem
não sabem
ou não querem 
a palavra.


Lisboa, 9 de Novembro de 2014
Carlos Vieira










sábado, 8 de novembro de 2014

Jardim Zoológico contíguo à minha infância



Feri-me
num joelho
na altura
em que saltava
o muro 
para o mundo
do Jardim Zoológico
tinha amigos
entre a bicharada
e os tratadores
clientes fiéis dos copos de três
do meu avô
na Travessa das Águas Boas
tinha no horizonte ao fundo uma sebe 
que não me lembro
em que estação tinha flores violeta
por cima delas os longos pescoços 
manchados das girafas
desde esses tempos a espreitar
foi a calçada molhada de granito 
a reluzir
e os bassos anos sessenta
com inveja das nossas brincadeiras
das caricas
passado tão vivo
como o sangue que corre 
de um ferida que nunca 
vai sarar.


Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira