terça-feira, 1 de maio de 2012

“A morte fica-te tão bem!”


Das dunas, olhava estupefacto, o que mais me surpreendeu foram aqueles homens vestidos de nuvem, aspirando a maresia e pairando na neblina de Abril sob a praia como se fossem deuses de lupa na mão, a aumentar o caos de areia e sal. Poderiam bem ser, não fosse outros adereços, criaturas de plâncton e de espuma animada numa estranha coreografia, em “slow motion”.

Adivinhei a mancha de um corpo estatelado sob a manhã e um arraial de fitas à sua volta, fiquei por instantes toldado pela perturbação do vai e vêm azul e vermelho dos pirilampos das viaturas das autoridades, adivinhava os rabiscos e croquis dos cadernos de apontamentos dos investigadores estremunhados.

As gaivotas que passavam pelo grupo, observando distâncias, desaprovadoras, deixavam breves palpites, interrogações nas elipses dos seus voos a que não conhecia princípio, nem fim.

Uma mancha de sangue acendeu um brilho no olhar do investigador como se o sol tivesse nascido naquele mesmo instante, não lhe ocorreu com certeza mero incidente de animal ferido, não, ele estava ali para perceber aquela morte.

Aproximei-me mais da cena, tanto quanto o poder das lentes e da razão mo permitiam, não parecia haver sinal de luta ou então ela foi muito interior, anterior e ali apenas temos um cadáver sem orifício de entrada ou de saída, o que poderia não dar mais descanso.

O corpo reinava, atento à sua estratégica disposição, via-se de qualquer lado sobre as dunas, ali esteve, certamente, à espera que a maré subisse, para lhe beijar os pés descalços uma última vez.

Ligeiramente curvado e deitado sobre o lado esquerdo, aquele homem de meia-idade parecia ter adormecido e percebia-se no seu rosto a tranquilidade de quem já tinha enfrentado a morte, de quem conhece a vida.

Tinha-se barbeado e de pronto, dirigiu-se à praia que o conhecia para morrer como uma baleia, para que toda a gente o visse morto e sem ninguém, não contassem mais com a sua solidária grandeza.

A última coisa que pretendia, era causar muito incómodo, queria que a sua morte fosse limpa, sem a mínima suspeita, como quem chega à última estação e diz boa noite ao maquinista.

Nenhum cenário deveria estar afastado, crime, suicídio, morte por doença terminal, quem o tinha abraçado a última vez, quais os motivos que estiveram subjacentes àquele ritual de solidão, que ardor insustentável ou ferida ocasional, muitas perguntas estavam por fazer e por responder, nomeadamente, onde se encontravam as peúgas e os sapatos 42/44 da vítima?

Esperem, encontraram uma foto colorida - que raio, tenho as lentes embaciadas - nas suas mãos de morto amarfanhada, talvez de raiva ou do estertor da morte, disseram-me depois que era uma mulher de cabelo loiro curto e olhos azuis, daquelas mulheres que não escondiam a sua origem escandinava, no seu perfil distante, frio e de um branco imaculado, agora tinha o rosto com algumas rugas de papel fotográfico.

Não pode restar sombra de dúvida, fizeram uma busca minuciosa, apertaram o cerco, isolaram os vestígios sem contaminar, aí está, havemos de encontrar um rasto inscrito na clarividência dos flash’s e infravermelhos, a apontar o sul do ciúme ou da vingança.

Ninguém reparou que havia uma mulher a 150 metros dali, em direcção ao norte cozida com o negrume de magma dos rochedos, salpicados de tufos de erva. Parecia fumar uma cigarrilha e no seu rosto, o cabelo curto e revolto podia induzir em erro, mascarar a sua aparente serenidade ou a sua alma extinta.

Olhava a cena que se esfumava, aquela mulher poderia bem ser aquela que ligou para o 118, a que informou que se encontrava um homem morto na praia, muito friamente, de forma muito distante, como se fosse uma pessoa de família, de quem já não era muito chegada.

A seguir, dirigiu-se a um carro, um Golf cinzento prateado, que se encontrava ali, um pouco mais distante e partiu, não consegui tirar a matrícula, depois de entrar no alcatrão, desapareceu sem que me parecesse estar a fugir. Ninguém a viu ou ouviu aquela partida súbita, ninguém lhe perguntou nada, saiu de cena inexplicavelmente, antes de se tornar suspeita.

Regresso agora com pouca determinação o grupo de homens nuvem, de investigadores afáveis e reservados nesse ânimo de análise, correlação e síntese, de polícias e de cangalheiros fardados para o trabalho sujo, da contenção, da remoção, deixo-vos cada um com o seu nevoeiro e a sua clarividência, que o vento levante a areia e apague os vestígios, deixem o morto em paz ou que a sétima onda os leve a todos, que corra com eles, vão investigar para outro lado.

Eu já tenho o autor identificado a partir dos meus binóculos, ausente em parte incerta, porque o pobre diabo que jazia à beira-mar, só pode ter morrido na dor da separação e da ausência, aquela mulher só esteve ali para chorar as primeiras lágrimas e está por dentro de tudo. Depois de ver que o morto estava bem entregue, seguiu a sua vida e foi viver a sua morte longe pois não estava ali a fazer nada e tudo foi apenas uma infeliz coincidência, no local certo à hora errada.

A fotografia era de autor, um passaporte para regressar à vida. Consigo ainda ouvir as palavras do homem “Espera uns minutos mais, meu amor, antes de partir!”

Lisboa, 30 de Abril de 2012

João Carreira

                              
                                        Imagem do filme "O Sétimo Selo" de Ingmar Bergman




segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sem história


Seguir pelo lusco-fusco
da História
resvés a tempestade
que açoita
o silêncio da memória
mais um revés
na já trémula verdade
do golpe de florete
o duelo da honra é vanglória
bruxuleante
a luz se apaga transitória
e a vida num instante
torna a morte rogatória
espírito errante
no seu sossego contraditória
de gente
anónima se faz a História

próxima
a que se fez distante.

Lisboa, 30 de Abril de 2012
Carlos Vieira

                                   

domingo, 29 de abril de 2012

Trespassers William - Love Is Blindness

Frédéric D. Oberland feat. Gaspar Claus e Jayne Amara Ross- The End

The Mount Fuji Doomjazz Corporation - Space

Imany GREY MONDAY.wmv.flv

Granada (Lara) - Angela Gheorghiu

Dale Cooper Quartet e The Dictaphones - Eux Exquis Acrostole

sábado, 28 de abril de 2012

Balada para un loco - Astor Piazzolla e Amelita Baltar

Le transiberien 3eme partie


Or, un vendredi matin, ce fut enfin mon tour

On était en décembre

Et je partis moi aussi pour accompagner le voyageur en bijouterie qui se rendait à Kharbine

Nous avions deux coupés dans l'express et 34 coffres de joailleries de Pforzheim

De la camelote allemande "Made in Germany"

Il m'avait habillé de neuf et en montant dans le train j'avais perdu un bouton

- Je m'en souviens, je m'en souviens, j'y ai souvent pensé depuis -

Je couchais sur les coffres et j'étais tout heureux de pouvoir jouer avec le browning nickelé qu'il m'avait aussi donné

J'étais très heureux, insouciant

Je croyais jouer au brigand

Nous avions volé le trésor de Golconde

Et nous allions, grâce au Transsibérien, le cacher de l'autre côté du monde

Je devais le défendre contre les voleurs de l'Oural qui avaient attaqué les saltimbanques de Jules Verne

Contre les khoungouzes, les boxers de la Chine

Et les enragés petits mongols du Grand-Lama

Alibaba et les quarante voleurs



Et les fidèles du terrible Vieux de la montagne

Et surtout contre les plus modernes

Les rats d'hôtels

Et les spécialistes des express internationaux.



Et pourtant, et pourtant

J'étais triste comme un enfant

Les rythmes du train

La "moëlle chemin-de-fer" des psychiatres américains

Le bruit des portes des voix des essieux grinçant sur les rails congelés

Le ferlin d'or de mon avenir

Mon browning le piano et les jurons des joueurs de cartes dans le compartiment d'à côté

L'épatante présence de Jeanne

L'homme aux lunettes bleues qui se promenait nerveusement dans le couloir et me regardait en passant

Froissis de femmes

Et le sifflement de la vapeur

Et le bruit éternel des roues en folie dans les ornières du ciel

Les vitres sont givrées

Pas de nature!

Et derrière, les plaines sibériennes le ciel bas et les grands ombres des taciturnes qui montent et qui descendent

Je suis couché dans un plaid

Bariolé

Comme ma vie

Et ma vie ne me tient pas plus chaud que ce châle écossais

Et l'europe toute entière aperçue au coupe-vent d'un express à toute vapeur

N'est pas plus riche que ma vie

Ma pauvre vie

Ce châle

Effiloché sur des coffres remplis d'or

Avec lesquels je roule

Que je rêve

Que je fume

Et la seule flamme de l'univers

Est une pauvre pensée...



Du fond de mon coeur des larmes me viennent

Si je pense, Amour, à ma maîtresse;

Elle n'est qu'une enfant que je trouvai ainsi

Pâle, immaculée au fond d'un bordel.

Ce n'est qu'une enfant, blonde rieuse et triste.

Elle ne sourit pas et ne pleure jamais;

Mais au fond de ses yeux, quand elle vous y laisse boire

Tremble un doux Lys d'argent, la fleur du poète.



Elle est douce et muette, sans aucun reproche,

avec un long tressaillement à votre approche;

Mais quand moi je lui viens, de ci, de là, de fête,



Elle fait un pas, puis ferme les yeux- et fait un pas.

Car elle est mon amour et les autres femmes

N'ont que des robes d'or sur de grands corps de flammes,

Ma pauvre amie est si esseulée,

Elle est toute nue, n'a pas de corps -elle est trop pauvre.



Elle n'est qu'une fleur candide, fluette,

La fleur du poète, un pauvre lys d'argent,

Tout froid, tout seul, et déjà si fâné‚

Que les larmes me viennent si je pense à son coeur.



Blaise Cendras (1887-1961)


Wim Mertens - Tout Est Illuminé

Sinais de fumo



a palavra mensagem

imolou-se

e quase pegou fogo

a todo o texto

agora sem chama

vigiam-se no entanto

os reacendimentos

sem sentido

do cheiro do carvão

entre os escombros

desta cinza de palavras

ergue-se

o incêndio de um grito

sinais de fumo

da ausência

do nada



Lisboa, 28 de Abril de 2012

Carlos Vieira



“Imagem de Nagasaki”


Live Marie Roggen - Antonio's Song

sexta-feira, 27 de abril de 2012

ESTHER OFARIM You know who I am

O amor é um ouriço

pelas fragâncias  da horta
e da noite o ouriço passeia
uma coroa de espinhos

no branco sujo da lama
e da sombra o ouriço
leva um aguilhão na alma

no focinho pontiagudo
do ouriço sorriem seus olhos
pequenos penetrantes

o ouriço esse último
nómada e acerado animal
tem sonhos de rosa e rouxinol

ouriço do silêncio
bicho das manhãs de orvalho
e subtileza de um rasto

esconde-se atrás
de um tímido arbusto
ouriço é inesperada lua

ouriço é o coração
fechado sobre si mesmo
com espinhos por dentro

Lisboa, 26 de Abril de 2012
Carlos Vieira

“rapariga com ouriço” por Mikejohnson

quarta-feira, 25 de abril de 2012

George Orwell

Lilies of the valley

revolução tranquila


                                                                                   “The house was quiet and the world was calm.

                                                                                     The reader became the book; and summer night”

                                                                                      Wallace Stevens







pétala

grito coado de seiva onde se tece

o pensamento da luz e do silêncio

e o primeiro canto livre dos espinhos

de coragem



sílaba

nos lábios de veludo onde renasce

a escola da ternura e o espanto da porta aberta

o azul é apenas o mar à volta das palavras

de viagem



perfume

das manhãs sobre o tronco da liberdade

que desperta e nos abraça desajeitada

e na sua timidez ainda seduz os pássaros

de passagem



lâmina

que te corta as cordas em que corre agora o sangue

dos teus pulsos e se reinventa nessa flor caída

no chão da história onde germinam tranças de sonho

de miragem



lágrima

página de água que se solta do cárcere da carne

véspera de dor que vence a vasta solidão do areal do tempo

e nas conchas das tuas mãos se oferece em sede de perdão

e de paisagem



cópula

onde cada átomo é o testemunho de puro prazer

em cada um se aprende que somos o vento e o céu e a vergonha

e cada gesto mais penetrante do amor que buscamos nos encontra

mais selvagem



pétala ou sílaba

de perfume e lágrima

lâmina da cópula

onde chora

onde cheira

onde sangra

a revolução tranquila



Lisboa, 25 de Abril de 2012

Carlos Vieira


                                         “ Farmer Sitting at the Fireside, Reading” de Van Gogh

sábado, 21 de abril de 2012

Xaile Negro


Subitamente

invadiu a página em branco

o vulto de mulher de xaile negro

e lenço no cabelo

como se caminhasse de costas

para uma manhã de neve

 saiu do nevoeiro

algures no princípio dos anos sessenta

apercebi-me disso

pela tímida amostra de cabelo

que se soltou

uma confidência da memória

e considerando a falta de ritmo dos passos

uma desprezível curvatura do tronco

diria que podia atravessar a meia idade

naquele andar de viúva  frágil

ou de abandono de emigrante

tinha aquele olhar de mulher

que já deixou Deus a falar sozinho

depois era uma mancha

que descia no atalho do papel

vergastada pelo vimieiros

aproximando-se perigosamente do rio

e foi então que lhe vi o rosto

de pálida serenidade

como se a vida já tivesse partido à muito

como se precisasse da corrente

para voltar para junto de si

um espectro que adejava

à beira de outro tempo

e na tinta que corre pela página

fixando apenas o xaile negro

e o lenço mais à frente

dispersos na nudez do corpo frágil

debatiam-se os ossos e a luz

apenas sombras fugazes

à flor da erva

subitamente esbate-se

 e fico de novo sozinho

suspenso sobre o buraco negro

a perscrutar a mão que se estende

a acenar a página em branco

a aguardar o rumor da escrita



Lisboa, 21 de Abril de 2012

Carlos Vieira



                                      “Woman with a mourning shawl” de  Vincent Van Gogh

Marissa Nadler - Thinking of You

Joan Baez-Famous Blue Raincoat

Benny Carter - Sweet Lorraine -

Brenda Boykin - Love Is In Town.wmv

I love You Porgy - Keith Jarrett

Don Diego & Zaz- Ven Conmigo

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Quadro Nuevo_Paroles, paroles

Náufragos



hoje faz cem anos

do naufrágio

neste dia de cobalto

da esperança

que mergulha de novo em mim

também a chuva cai

“molha tolos”

e da janela da Queens University

observo os estudantes inteligentes e verticais

à mercê da meteorologia adversa

aqui em Belfast

ouvem-se submersos na neblina do tempo

os gritos dos náufragos

e nos telefones que tocam

aqui deste lado

ouve-se o silêncio do fundo do mar

e os estudantes afundados em exames

em questões

em projectos

mais mortos que vivos

e os desesperados deste Titanic europeu

ouço-os porque se entranham até aos ossos

num murmúrio

de chuva miudinha

dos corpos ausentes

abrem-se enormes brechas

no duplo casco da democracia moderna

e fico gelado até ao espanto

fica deserto o navio solidário

especado no nevoeiro

os estudantes lá vão

à bolina do conhecimento

esse poço da morte

cem anos depois

os sinos repicam esta profunda pobreza

em que mergulhados uns e outros à deriva

mais injustos por isso mais pobres

e vice-versa

os sonhos vão ficando ensopados

gaivotas de asas pesadas

nos portos onde há cruzeiros

fundeados

vendem-se sonhos

de barcos de amor

e fortalezas de fantasmas

cansados muito cansados da civilização

volta a chover em Belfast

cem anos depois

daqui avisto

os enormes exército dos deserdados

dão meia volta e avançam na lama

a verdade vem sempre ao de cima

a guerra parece coisa séria

discute-se nos gabinetes

disseca-se nos laboratórios

e pronuncia-se respeitosamente

nos mais destacado centros de decisão

nos cemitérios

a verdade vem sempre ao de cima

cem anos depois

assisto a este seminário onde se discute

as vantagens que existem

do leite materno

e as mães que não tem leite para os filhos

e os filhos que choram à fome

aprecio as explicações simples

e os comentários mais óbvios

houve uma distracção na distribuição

lapsos sempre vão existir sempre

a questão dos danos colaterais

e de não haver guarda chuvas

a crença obstinada do reequilíbrio do mercado

dos filhos da fome

está em crise

nos períodos de boas abertas

ou de fraca precipitação

os estudantes mais atrasados correm

porque aqui neste estabelecimento

pugnamos pelos princípios

e punimos com rigor os atrasos

à cem anos

morreram afogados muitas pessoas de Belfast

que vendiam saúde

agora que morrem os que estão doentes

e os a quem tratam da saúde

vislumbro a evidência dos moribundos

desfocada no vidro

o suave milagre soprado da vida

onde a chuva escorre

lágrimas inglórias

de chuva

não exista nada que seja mais dramático

que um filho doente

de ver a febre que teima em não descer dos 40º

e nós a assistirmos subjugados

à cem anos que chove na escola

tudo se aprende e tudo se apaga

mesmo nos momentos de nuvens mais carregadas

os professores erram por vezes

sendo fontes inextinguíveis de conhecimento

mesmo em dias de chuva torrencial

em que mal se ouviam as suas palavras

à cem anos

ouço a rádio que acordava Belfast

para um pesadelo

neste tempo de desempregados

onde chove copiosamente

e também se pode ouvir o vento gelado de tanta ausência



Belfast, 17 de Abril de 2012

Carlos Vieira


                                    “It wasn’t an iceberg that shank the Titanic”  Cody Rapol

sábado, 14 de abril de 2012

Andrómeda


Telúrica

vives séculos ajoelhada na tarde rural de um postigo

depois pode ser o rapto de um abraço, a mordaça de um lenço

o pânico do rosto inquieto onde o amor lê sinais esperança

e não vê sinais de perigo



No lago

surpreendida na tempestade navegas no barco amigo

soletras o relâmpagos e as trevas e na eternidade feroz

das vagas até se apagar o fogo do teu corpo deslumbrante

e sem abrigo



Sacro

é teu corpo já manso sobre o rumor do piano e do trigo

e os caracóis dos teus cabelos, vens descalça pelo sono solto

dos teus olhos que irradiam o brilho da noite

solitário epílogo



Ouve a minha trova

onde crepita o sangue de um canto antigo

a arfar no vulto tangível da mulher nova

ouve o coração despedaçado que sangra a ferida

rosa de um figo



Lisboa, 14 de Abril de 2012

Carlos Vieira



                                                                   “Perseus e Andrómeda”

Itzhak Perlman - André Previn - Night thoughts

Ryuichi Sakamoto - Opus

Windermere - Your Eyes Could Start a Fire

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O jogo do mundo




"O jogo da macaca joga-se com uma pedra que tem de se empurrar com a biqueira do sapato. Ingredientes: um passeio, uma pedra, um sapato e um belo desenho feito com giz, de preferência colorido. O Céu está lá ao fundo e a Terra aqui em baixo, é muito difícil acertar com a pedra no Céu, calcula-se quase sempre mal e a pedra sai do desenho. Pouco a pouco, no entanto, vai-se adquirindo a habilidade necessária para acertar em todas as casas (a macaca em caracol, rectangular, de fantasia, pouco utilizada), e um dia aprende-se a sair da Terra e a levar a pedra até ao Céu, até chegar ao Céu (…); o problema é que é precisamente nessa altura, quando quase ninguém aprendeu ainda a levar a pedra até ao Céu, que a infância se acaba e de repente se cai nos romances, na angústia inútil, na especulação de outro Céu ao qual também é preciso aprender a chegar. E como já se saiu da infância (…) esquece-se que para chegar ao Céu são necessários uma pedra e a biqueira do sapato, como utensílios básicos."


O Jogo do Mundo (Rayuela)

requiem por uma amizade

robert schindel /


Morreu o meu hóspede, vejo-o ainda a descer, a descer
Pelo caminho abaixo com a distância nos cabelos.
E de noite, quando as estrelas o permitem, serpenteia, serpenteia
O seu eco no coração, morreu o meu hóspede.

Um riso, um sapato, o violino de estar aqui
Bebíamos um copo ou dormíamos nas palavras mais novas
E havia segundos que fazíamos explodir
Saltar da lama do tempo, para assim o podermos entender.

Agora foi-se, o seu nome descansa, descansa o tempo
Levanto os pés do caminho e vou andando
Às arrecuas pelo atalho, o eco traz-me
O longe e o perto, eu e nunca, o hóspede-amigo do lado de lá.

Há por aqui outras paisagens?, perguntam por vezes as crianças.
Eu parto o caminho em pedaços e ofereço-lhes
Serpentinas, serpentinas, que elas recebem como maçãs e papoilas.
Porque tempos houve em que dormíamos nas palavras,
Tempos houve em que fazíamos explodir o tempo.
 
robert schindel

Star Mile - Joshua Radin