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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Em louvor da ociosidade



Olho o aqueduto,
chove,
cortinas de água
descem dos arcos.
Um toxicodependente abriga-se 
junto a um pilar
e admira o azulejo.
Um fogareiro passa afogueado,
vai admirar o Tejo
a olhar o taxímetro.
A mata do Monsanto
tem neste preciso momento
milhões de pérolas de água
penduradas nos pinheiros mansos.
Os homens também mansos 
e os cães vacinados contra a raiva
esperam que o mau tempo passe
e dizem os analistas e os psicólogos
que está quase a saltar-lhe a tampa.
A meados desta semana
vamos atingir o pico da gripe.
Vacinem-se, vacinem-se,
preparem-se para o pior.
Percorro o eixo Norte-Sul
com um pouco de sorte e de destreza,
hei-de ver o golfinho no zoo
a fazer um triplo salto,
enquanto outros 
no Japão na baía 
da cidade de Taiji
fazem das tripas coração.
E depois nas hortas sociais,
há gente de cócoras
a adubar as plantas,
que não aguentam mais.
Nesta região 
já me esquecia que temos a Bolsa,
nunca nos devemos esquecer da bolsa
de jogar,
hoje não se pode vender 
que os títulos estão em terreno negativo
Oh! Os seguros do Nasdaq!
Ali a dois passos,
na Praça de Espanha um velhote andrajoso
vende bolacha americana
e pensos rápidos
num sinal vermelho.
Tudo, negócios de oportunidade.
E o Borda-de-água!
Oh! Quase me esquecia
que há anos faz as previsões para o país
que nunca fomos,
num esforço sério
em que as sementes vingam.
Olho o aqueduto 
e sinto séculos de sede
de cidade sitiada,
de água desperdiçada,
vejo tudo isto
desta minha água-furtada
eu e o meu gato 
o " Zé do Telhado", 
que como todos os gatos
não gosta de água.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

sábado, 28 de dezembro de 2013

TESEU SEM MINOTAURO



para o Manuel de Freitas

Como em qualquer labirinto, estas esquinas
apenas garantem que não há certezas
na direcção do futuro. Lisboa
nunca foi como em tempos a sonhei.

E contudo venho aqui em peregrinação
habitual, sem tão-pouco saber que lhe pedir.
Indecisões da fé e da sua alavanca diminuta,
à qual desmesuradamente chamamos coração.


Vitor Nogueira

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Pequenas histórias avulso por Lisboa

                                                            Foto de autor desconhecido

Pequenas histórias avulso por Lisboa

não, não nasci em Lisboa, ela nasceu por dentro de mim

nesse concerto nocturno das águas tépidas
do banho da vizinha do andar de cima
meu primeiro sonho molhado

floresceu em centelhas e na destreza amável de carteirista
enquanto corria célere o eléctrico pela Estrada de Benfica
num Novembro estridente
a esvoaçar nos estribos corriam os sonhos tangíveis das crianças 

depois aquele irromper de um rugido de leão com cio
no meio do bairro e das flores e dos pescoços de girafas
que mordiam a savana e o asfalto e as grades do zoo

havia aquela caixa de sapatos com sortilégios de bichos-da-seda
sulcando calmamente as nervuras das folhas de amoreira
primeira lição de liberdade no adejar das frágeis borboletas

já nesse tempo havia corridas de barcos de papel
entre ancoradouros de sarjeta
sobretudo nesses admiráveis dias de chuva
e utopias de néon

acendia-se e apagava-se a liberdade
no curto circuito da esperança  de vida
e dos furtivos gestos de amores proibidos
como berlindes aquecidos dentro dos bolsos

jardins da infância na cidade que nunca seriam confinados
pois persistia sempre essa clandestinidade
de escorregas e baloiços

recordas-te, levavas pela mão a incansável e fria
solidão dos semáforos
a ordenarem as emoções e jogos de paciência

estremeço ainda perante essa suprema arte das corridas
de caricas no lancil e tu esperavas horas a fio a medo atrás da porta
os pequenos passos da censura

tenho este calafrio no cais das colunas dos mergulhos pagos
a essas crianças grandes que dali partiam e ali chegaram
desconhecendo ainda que tinham apenas aquele rio como destino


à margem do testemunho
nos seus olhos cresceram duas gaivotas cozidas “a ponto luz”
e a graça de um miradouro cinzento de asas cortadas

lembro-me de celebrares pequenos negócios matutinos
na feira da ladra
daquelas grandes misérias dos pequenos delitos
dos pequenos objectos de valor estimativo
e de enganares a fome

afogueada de aguardente velha rugias um fado vadio
das calçadas e dos pés descalços
que em algum momento dentro de nós persistem
depois e durante aquela ancestral rouquidão
que nos tolheu

olhavas a ponte sequestrando o sul e o sol no Bugio
e os cacilheiros tolerados pelos navios no estaleiro
pressentindo o teu corpo cercado de solidão
sob uma diáfana camisa de forças

os táxis nas suas loucas corridas intermináveis
a fintarem os bons costumes
nunca se enganavam nos caminhos

as esplanadas das palavras cruzadas e de cafés
com pouco açúcar e das damas antigas esborratadas
de pinturas
e dos livros proibidos e dos muitos nós
do nosso reconhecimento

acreditavas nas feridas dos Cristos e nas navalhas
essas luas ensanguentadas
que uivavam nos becos

a tua mão pousada nos rendilhados e esplendores
de luz e de pedra 
e tu ficavas extasiada na Fonte Luminosa
essa prodigiosa flor de água mansa
a propósito do nada

são célebres as esperas e o adeus para nunca mais
a partir das torres de Belém das nossas vidas
de partidas e de chegadas
sobretudo da ausência dos que ficaram pelo caminho

perdido na estufa fria dos labirintos de flores e aromas
reconheço-te nas sete colinas que formam
a corola desse tempo
de pensamento único

reconheço-te no teu mais instável equilíbrio
no principio era a primeira bicicleta
no jardim do Campo Grande
em segunda mão
mas em estado novo


Lisboa, 13 de Janeiro de 2012

Carlos Vieira