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quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Herberto Helder - Tríptico II


domingo, 21 de agosto de 2016

Não sei como dizer-te


Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima - eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim te procuram.
Quando as
folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a
primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milgares
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.
*Herberto Helder

sábado, 25 de janeiro de 2014

Os cães gerais...



"os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia de ar e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, o ar cego:
e queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro"

Herberto Helder, Servidões, Assírio & Alvim, Maio de 2013, p. 68.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Habitar Herberto



(…) um poema é a melhor crítica a um poema (…) *

estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela *
Prendo na mão o teu hálito
quente e já a minha pele não resiste à
combustão iniciática.
Hoje é um dia claro e quieto. As bocas
descansam numa respiração branca
imperturbada
e só o teu hálito
persiste no labor das chamas,
no cantante ofício de forjar as palavras
 que me pões a arder nas linhas da mão
como um destino.
Laranja, pêra, madeira, luz, cabelo, fogo, ar.
Substantivo.
Língua.
Ardem-me nos olhos e nos contornos
inflamáveis das coisas
que carregam o fogo.
Cabelo. Madeira.
Ainda há pouco o meu cabelo era só
um punhado de fios castanhos,
sem temperatura e sem elemento.
Agora tenho madeira quente a
estalar nele. Cabelo de primeira fêmea.
Leio-te fogo e logo o dia branco
irrompe em chamas.
Tudo é consumido no teu substantivo –
fêmea, macho, calendário.
A matéria ateada é uma constelação de astros
em brasa.
Dedos, boca, umbigo, dorso, mênstruo, púbis, flancos.
Língua.

Sinto a laranja na tua respiração.
Aperto-a na palma da mão e
refaço-a na boca. Escorre-me o sumo pelo
queixo, pelos braços, pelo ventre.
Flancos, mênstruo.
O meu útero incendiado, a
urgência menstrual.
E a tua língua a explodir-me
no centro do corpo.


* Herberto Helder, A Faca Não Corta o Fogo

Helena Carvalho, in Revista Cràse nº 1.