sábado, 27 de agosto de 2016

Fragmentos de uma cadeira de balouço


No baú da memória
e do futuro
revejo-te sentada 
no velho cadeirão de cerejeira
fustigada de reflexos
a tua nudez iluminada
debaixo do castanheiro
só tu podes pressentir
a navegação
dos ouriços dourados
no ribeiro
e o peso do silêncio
na sinfonia
que compões
que tens de ouvido
que te sopra a brisa
acrescentas-lhe
o resfolegar
no canavial
do amor escondido
um frémito antigo
de medo animal
vais pelo que te resta
da memória abaixo
num serpenteado gorgolejar
em gargalhadas e festa
de águas e de sentidos
a preencherem
as aceradas reentrâncias
de desejo
uma volúpia
de seixos e de espinhos
sobreposto
pode ouvir-se
o ritmo sincopado
do balouçar da cadeira
tão desconjuntada
na intermitência
da ternura
e na já distante
subtileza
de um murmúrio
as falas de amar
acompanhadas
de surpreendentes gestos
tão sublimados
de trevas
e de violência
numa rasgada urgência
amortalhados
em almofadas
e tardes de bordados
na frescura dos lençóis
pode ouvir-se ainda
o canto solícito
um festivo pestanejar
e o rumor do teu corpo
em guerra com o inacessível
a que se seguia
o esgar
e o irromper em voo de um grito
de um pássaro atónito
de prazer
perante o dardejar ao sol
e à chuva
a inclemência de um amor
destemperado.
Lisboa, 5 de Julho de 2016
Carlos Vieira


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