sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A piedosa interpretação de uma natureza morta


Foi o primeiro investigador criminal a chegar junto do cadáver, deparou-se com o cabo esculpido em madrepérola do punhal, no peito da vítima, no meio de um auréola de sangue e um rasgo vertical na camisa branca desfraldada
anotou num pormenor de um botão que navegara num rio vermelho que tivera a sua nascente debaixo do corpo
em decúbito dorsal
enfiava as luvas de borracha e olhava um pouco mais inquisidoramente o rosto do indivíduo mas este manteve-se em silêncio a olhar para o vazio
enquanto isso, somente a barba de três dias lhe sobrevivia, procurou afastar os seus ancestrais pruridos de tocar no corpo sem vida, aperceber-se da progressão da rigidez cadavérica, foi afinando a sua relação com o morto e com a morte
na televisão acesa prosseguia mais uma etapa do Tour de France, enfatizava-se a distância dos fugitivos para o camisola amarela mas a sua meta era agora outra, procurou distanciar-se dos estímulos que o cercavam
avançou na sua busca de respostas, nas mãos e nas unhas bem tratadas do finado arquitecto que não metia pelos vistos mãos na obra, que medidas terá falhado? que ausência de luz não lhe permitiu evitar a sombra
ou melhor se defender do inimigo que o derrubou?
tudo leva crer ter existido luta, não sendo tarefa fácil lidar com aqueles noventa quilos de peso, continuou sozinho
a lutar com as suas dúvidas e a sua sede, a matutar, a erguer os primeiros cenários
enquanto os colegas dos homicídios e do local do crime não chegavam, interrogava-se que inimigos poderia ter
um homem solteiro de cinquenta e cinco anos aparentando estar bem de vida, que lado negro ainda lhe poderia esconder, que culpa a vítima poderia carregar e levar consigo
percorreu o chão à volta do Vasco cidadão tentando encontrar outros vestígios e detalhes, a olho nu, salvo um chinelo de uma marca conhecida que ali estava à deriva, era uma mancha de veludo no soalho flutuante, antes do sofá de pele, paquiderme inanimado, tudo parecia padecer de uma estranha arrumação
uma cascata de luz dos “led" espraiava-se pela sala, iluminando a encenação das amálgamas de gente e de bichos a penderem dos vértices dos quadros de arte contemporânea, espreitavam-lhe agora o desvelo de investigador curvado, uma inusitada “madona" piedosamente atenta àquele corpo familiar surpreendente simulacro de amor
preocupado em eliminar hipóteses e sedimentar certezas tinha entrado em módulo de imersão total, naquela cúmplice solidão de quem já não tem mais nada dizer e de quem somente agora começou a perguntar, sempre
demasiado tarde, com maior ou menor oportunidade
verificou a cicatriz antiga de uma fractura da tíbia e perónio, observou as partes mais íntimas despudoradamente
e prosseguiu até à zona onde a lâmina penetrara fulminante na epiderme, independentemente da opinião da medicina legal, procurou perceber ângulos de entrada e reconstituir o gesto do agressor
na retaguarda gerou-se um expectável sururu, alguém dava gritos que iriam culminar em choro, o defunto
não ficou, particularmente, impressionado e tão pouco o inquiridor
continuou a viagem rumo ao pescoço, sondou a boca entreaberta, os olhos agora cegos, deviam ter sido acutilantes, habituados a definir rumos e traços precisos, o nariz adunco e as orelhas quase agudas,
acentuavam-lhe um lado fantasmagórico
teve um súbito arrepio, devia esperar que o colega o ajudasse a virar um pouco de lado o cadáver, para lhe verificar as costas, percorreu com o olhar o tampo de secretária, ali próxima, forrado com pele verde alguns papéis amarfanhados pareciam pássaros desesperados, em preparação para levantar voo, ficou esperançado em encontrar naquele frenesim de papel, alguma explicação dos enigmas que o assaltavam e a definir a direção das múltiplas que o levaria até ao autor
respirou fundo e olhou à volta, era melhor esperar pelos colegas que duas cabeças podem chegar mais longe que uma, vasculhou a cinza de uma lareira com uma tenaz e no final, apenas o pó de uma antiga chama ou de um desvario
foi junto ao parapeito de uma janela que entreabriu, pela frincha deixou entrar uma breve corrente de ar e encheu os pulmões e deixou o seu olhar sobrevoar o circo dos néons e pirilampos das viaturas da polícia e dos bombeiros
e voltou para dentro de si, que raio se passou aqui? a morte com punhal já não se usa, nem há romanos, nem florentinos, nem nevoeiros londrinos, na hodierna traição a morte é uma benção
Lisboa, 24 de Julho de 2016
Carlos Vieira

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