terça-feira, 30 de agosto de 2016

Depois de uma noite em branco


É inacreditável
como só agora me dou conta
como gosto de branco 
de preencher
esse lugar do esquecimento
onde percebi
o efémero das pegadas
e a penumbra de um voo
a agitar o líquen
na planície polar
e depois do virar
da página do degelo
o recomeçar da vida
no espanto da tundra
carater a carater
num texto singelo
erva a erva
percorrer a superfície
desértica e lunar
entre a impaciência
do animal
na palavra que encanta
e aquela que dispersa
o homem
momentos da angústia
de tanto sopesar
de cores carregadas
de ausência
e de repente uma branca
um desespero
que nos tolda
que te abraça
sucede-lhe a coragem
o instinto de sobrevivência
a caça
pelos secretos interstícios
da alegria
e num lampejo
que fez do lençol branco
camisa de forças
e com ele vincado
de insónias
amarrei a noite
fugi da reclusão
do seu beijo.
Lisboa, 29 de Agosto de 2016
Carlos Vieira

A subtil relevância dos objetos


Um par de chinelos brancos
repousam
sobre a carpete macia
e a luz da manhã
faltam-lhe os teus pés
o teu perfume
asas do meu dia.
Lisboa, 30 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Apontamento de asa ferida



A pomba branca  
uma ferida no céu azul
que se despenha 
e no seu regresso
se desenha
num excesso de sul
e exaurida de sal.

Lisboa, 30 de Agosto de 2016


Carlos Vieira

domingo, 28 de agosto de 2016

De partida (para Maastricht)


Segue o teu rumo
prova o sumo
poderás beber do fel
partilha
esse teu belo sorriso
minha filha
tem o bom juízo
e uma certa loucura
partiste
nessa aventura
de quem não desiste
do sonho tão mais alto
que a tua altura
que é muita
visto que é sonho
ama como quem luta
enfrenta o infinito
e o medonho
desfruta
a chama acesa
no íntimo
de cada partícula
a beleza
de cada migalha
à mesa do universo
se o teu coração sofre
alguém te escuta
por ti tudo pode fazer
e nada ser
mais forte
que um verso
vislumbra
longe das luzes
o gesto mais nobre
sacia-te da melodia
que mais pura
vai brotar
no cume da montanha
nunca imaginada
e só a sua voz
te pode levar
além de ti
aqui comigo
ficou esse halo
do teu sorriso
que a madrugada
inveja
a amêndoa delicada
do teu olhar
uma longínqua
contingência
da lágrima
que agora
posso secar
apenas com a brisa
da minha mão invisível
ainda contigo
para te guardar
levaste
esse tão indiscreto
gesto inábil
de te amar
em silêncio
ficou e partiu
esse grito
em uníssono
contra a vil cobiça
e a injustiça
do mundo
minha querida
podes esquecer tudo
mas nunca
esqueças isto
este tão pobre
e tão valioso
legado.
Voa voa voa
minha filha
que o teu pai
está em Lisboa.
Aeroporto Humberto Delgado, Lisboa, 27 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Constança

Marguerite Duras et l'amour du vide








Beck - everybody's gotta learn sometime




Mude seu coração
Olhe ao seu redor
Mude seu coração
Você vai se surpreender
Preciso do seu amor
Como o brilho do sol....







Linhas da vida

Linhas paralelas tem muito em comum, no entanto jamais se encontrarão. Talvez pensem que isso é triste. Mas qualquer outro par de linhas encontra-se uma única vez e depois afastam-se para sempre, o que é igualmente triste!



Pablo Neruda


Blue Velvet - Isabella Rossellini


This Mortal Coil - Another Day


Ólafur Arnalds - Near Light (Official Music Video)


Youth La giovinezza


Arrábida: entre o tempo e a eternidade de Viriato Soromenho Marques (DN)

"A Arrábida é um dos territórios nacionais com maior presença simbólica na consciência coletiva..." Viriato Soromenho Marques


Sebastião da Gama: "Ausentei-me de aqui, de corpo e alma/ diluí-me na paisagem/ e a rocha ficou vazia/ com ar, só ar /com ar, só ar, em cima dela/ Ora, porque será que estou ainda a vê-la/ a Tarde/ porque será que a vejo como, de cima do rochedo, a via/ se eu afinal já sou ela?" (Inédito de 20.07.1944).

http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/viriato-soromenho-marques/interior/arrabida-entre-o-tempo-e-a-eternidade-5351643.html

Histórias breves da guerrilha III


Era uma madrugada de verão, julho talvez, algures no século passado. desde o princípio da noite circundavam o sopé dos pequenos montes. tinham-lhe trocado as voltas pouca gente sabia porque o faziam. uma neblina filtrava as corolas pendentes dos arbustos nos estreitos caminhos e deixava-nos encharcados. pesavam-lhe as mochilas verde tropa, onde se aconchegavam rações de combate, acendalhas, primeiros socorros. pequenas ferramentas para a vida e para morte e todo o tempo para limpar armas. as armas ao colo eram crianças preparadas como nós para o fogo na alma do cano e do corpo. na abordagem a cada arbusto treinavam a guerra e não é mesma coisa. por isso havia tempo para os ângulos mortos da paisagem. as aves e os animais eram verdadeiramente os únicos incomodados nas emboscadas. ainda bem que tendo ido à tropa nunca fui à guerra e isso faz toda a diferença, para mal e para o bem e para o lusco-fusco.
Lisboa, 22 de Agosto de 2016
Carlos Vieira

Histórias breves da guerrilha II


junto
ao silvado bravo
é também o soldado
agachado
na emboscada
medonha da noite
indiferente
devora o melro
a negra amora
e o rapaz sonha
voltar à retaguarda
ao trilho de uma paz
proclamada
e acaricia a coronha
da espingarda
dedo nervoso
no gatilho
Lisboa, 21 de Agosto de 2016

Histórias breves de guerrilha I


Acordou
estremunhado
saiu da tenda
e o luar
iluminava
o ouro infinito
das dunas
e ocultadas
pela penumbra
das mesmas
sobre o silêncio
do deserto
e a profícua
solidão noturna
erguiam-se
certamente
fatídicas
cimitarras
e talvez o tumulto
do sangue
após
a eloquência
que pode ser
a memória
de um beijo
ou o prenúncio
de doces tâmaras
sob a elegância
curvilínea
das palmeiras
o seu coração
estremeceu
perante
a longínqua
nuvem de pó
e no impercetível
desvanecer
das estrelas
ouviu-se um tropel
no pensamento
no entanto
adormeceu de novo
a sono solto
revolto voltou
ao esquecimento
dos desesperados
e quando
lhe bateram
à porta
não se surpreendeu
ao encarar
os pobres soldados
ávidos
do saque prometido
aqueles
na sua infinita
misericórdia
abateram-no
de um só tiro
e deixaram-no
em paz.
Cegos
pela expectativa
das riquezas
e da glória
quem os levará agora
ao esplendor do ouro
nas dunas
e ao mel das tâmaras
na penumbra
das palmeiras
como desvendar
o segredo
que lhe impedirá
a insónia
e temperar
o fel da vitória?
Lisboa, 20 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Andrew Wyeth, "Weather"


Anton Tchekov, "A Mulher do boticário"


O lugarejo de B.., formado por duas ou três ruazinhas tortas, dorme seu sono pesado. No ar espesso o silêncio é total. Ouve-se apenas, ao longe, fora dos limites da cidade, o latido ardido e líquido de um cão que aos poucos enrouquece. É quase o amanhecer.
Há muito tempo que tudo está dormindo. A única que não dorme é a jovem mulher do boticário Tchornomordik, proprietário da farmácia de B… Já tentou deitar-se três vezes, mas, não sabe por quê, o sono teima em não querer chegar. Sentada, a janela aberta, veste apenas uma camisola e olha para a rua. Sente calor, tédio, desgosto. Tanto desgosto que lhe dá até vontade de chorar; de novo, não sabe por quê. Sente um nó no peito que de repente lhe chega a garganta… Poucos passos atrás dela, colado à parede, dorme Tchornomordik e ronca baixinho. Uma pulga esfomeada suga-o a raiz do nariz, mas ele não percebe e até sorri, pois está sonhando que todos na cidade estão com tosse e compram dele, interminavelmente, as gotas do rei da Dinamarca. Nenhuma picada poderia acordá-lo agora, nem um canhão, nem uma carícia.

Escolhas para as crianças sírias







Georges Simenon, excerto do livro "Carta Para Minha Mãe"


«Quantos [homens] houve desde a pré-história? Ninguém sabe. O que se pode supor é que, tal como acontece agora, se bateram uns contra os outros, se mataram uns aos outros, que devem ter lutado contra os vizinhos, os grandes cataclismos cósmicos e as epidemias.
No entanto, todos, mais ou menos, pensaram o seguinte:
- O que é o homem? Quem é o meu vizinho?
Hoje em dia, a etnografia anda à procura dos vestígios desses homens de antigamente, que são, afinal, os nossos avós; nos laboratórios do mundo inteiro a biologia tenta conhecer o homem actual.
No entanto, não conhecemos as pessoas que vivem na porta ao lado, as pessoas com quem nos cruzamos diariamente na rua, com quem trabalhamos lado a lado.»

sábado, 27 de agosto de 2016

A indiferença e o amar dos tímidos


Volta à escrita como a criança
dá-lhe a mão a cada palavra
é uma oração que te revela
ponte suspensa na respiração
de passagem de uma vida
vegetando na tua margem
corrente que te leva e traz
uma espécie íntima de música
na penumbra de secreta solidão
descansa sob a abóbada da paz
cercada do eco das tuas palavras
enquanto as suas amordaçadas
são apenas olhares gumes
abrindo feridas no muro da espera
e o seu silêncio é cálice de veneno
reservado à sua morte diária
ou à alma cruel da sua dissidência.
Lisboa,13 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


"O cinema é isto: sombras e luzes e seres humanos aflitos no meio" João Botelho

"O mundo foi destruído em nome do entretenimento e de uma imagem pessoal do meu e do meu e do meu. As pessoas não querem ver as obras: querem ver-se ao pé das obras."

http://www.dn.pt/portugal/entrevista/interior/o-cinema-e-isto-sombras-e-luzes-e-seres-humanos-aflitos-no-meio-5336613.html



"Caminha sem descanso pela cidade de Lisboa mas também em todos os sítios por onde trabalha. Não é uma coincidência: parte hoje para um périplo asiático, preparando a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto" DN

País de fogo e cinzas


Hoje
o fogo
devora
a substância
vegetal
no coração
de um tempo
ancestral
que é também
nosso
amanhã
toda
uma vida
caberá
na sua mão
que é nossa
amanhã
vamos
de olhar
embargado
erguermo-nos
das cinzas
para reacender
o sonho
e esquecer
a raiva
a dor
que nos tolhe
e seremos
apenas
o ardor
do futuro.
Lisboa, 11 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Fragmentos de uma cadeira de balouço


No baú da memória
e do futuro
revejo-te sentada 
no velho cadeirão de cerejeira
fustigada de reflexos
a tua nudez iluminada
debaixo do castanheiro
só tu podes pressentir
a navegação
dos ouriços dourados
no ribeiro
e o peso do silêncio
na sinfonia
que compões
que tens de ouvido
que te sopra a brisa
acrescentas-lhe
o resfolegar
no canavial
do amor escondido
um frémito antigo
de medo animal
vais pelo que te resta
da memória abaixo
num serpenteado gorgolejar
em gargalhadas e festa
de águas e de sentidos
a preencherem
as aceradas reentrâncias
de desejo
uma volúpia
de seixos e de espinhos
sobreposto
pode ouvir-se
o ritmo sincopado
do balouçar da cadeira
tão desconjuntada
na intermitência
da ternura
e na já distante
subtileza
de um murmúrio
as falas de amar
acompanhadas
de surpreendentes gestos
tão sublimados
de trevas
e de violência
numa rasgada urgência
amortalhados
em almofadas
e tardes de bordados
na frescura dos lençóis
pode ouvir-se ainda
o canto solícito
um festivo pestanejar
e o rumor do teu corpo
em guerra com o inacessível
a que se seguia
o esgar
e o irromper em voo de um grito
de um pássaro atónito
de prazer
perante o dardejar ao sol
e à chuva
a inclemência de um amor
destemperado.
Lisboa, 5 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Leonard Cohen

LEONARD COHEN
"Chegámos a um tempo em que somos tão velhos que os nossos corpos se desfazem; penso que serei o próximo, dentro em pouco. Quero que saibas que estou tão próximo de ti que, se estenderes a mão, talvez possas tocar a minha. Sabes que sempre amei a tua beleza e sabedoria, mas não preciso de discorrer sobre isso porque já sabes de tudo perfeitamente. Quero apenas desejar-te boa viagem. Adeus, velha amiga. Todo o amor, encontramo-nos no caminho.”

https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/aug/08/leonard-cohen-letter-to-marianne-ihlen-was-poetic-and-candid?CMP=share_btn_fb


Nick Cave & The Bad Seeds - 'Skeleton Tree' / 'One More Time With Feeling' Official Trailer

"No trailer de apresentação do álbum, sobre esparsas notas de piano e o som assombrado do violino tocado por Warren Ellis, Cave dirá, depois das frases citadas no início deste texto: “O que acontece quando se dum acontecimento tão catastrófico(a morte de um filho com 15 anos) é que te transformas. Mudas da pessoa que conheces para um desconhecido. Quando te olhas ao espelho, reconheces a pessoa que eras, mas a pessoa por baixo da pele é diferente."


Dersu Uzala Arika Kurosawa






sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Minuete para um noite de Verão


Tu eras o céu
de um azul
suspenso
por inventar
onde podia
estrelejar
a palavra
e o gesto
subtil
ele efémero
morreu
porém
sufocado
de êxtase
em ti
e tu ficaste
cega
ignorando
o seu desespero
de brilhar
para ti
e quanto mais
o ritual
te ofuscava
menos
o podias ver
salvar
tu eras azul
por inventar
e foste
o céu.
Lisboa, 31 de Julho de 2016
Carlos Vieira
Imagem de autor desconhecido

Os Amigos


Os amigos amei
despido de ternura
fatigada; 
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.
Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"

Ferreira Gullar


Humanity


“Last Night at the Lake” by Leslie Anderson


Escriturar

depois que lhe quis dar voo
não volto a ler o poema
porque sempre descubro
o escriturar das imparidades
Lisboa, 30 de Julho de 2016
Carlos Vieira

Histórias de tempo de amor e morte


I
ela era pedra quente e relógio de sol
ele apenas a sombra esguia do ponteiro
a refrescar o silencioso mármore da sua pele
II
ela era silício de flores e o relógio de água
ele uma fonte inesgotável
a suplicar trégua ao tempo de traidores
III
aquela serenidade é quase eterna
não fosse a impunidade que suporta
e a noite que os liberta
IV
o corte da carótida pelo punhal
que he ceifou a vida definiu o labor do cinzel
e lhe esculpiu o amor na morte
V
quantas vezes sinto que morri em ti
o eco na memória da tua mão e coração de pedra
medra ao roçar a tua combinação de seda
VI
por quanto tempo seremos o desencontro de dois rios loucos
que sorrimos sem graça e que morremos aos poucos
para quando outra vez tréguas de água viva
numa qualquer alcobaça
Lisboa, 30 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Na Quinta do Norte

No dia 28 de Julho de 1927 nasceu John Ashbery, poeta que disse:
"Eu não entendo o bastante acerca de perceber poesia. Eu vivo os poemas com prazer: se eu os entendo ou não, não estou muito seguro. Eu não quero ler qualquer coisa que eu já sei ou que poderá tornar-se de leitura fácil: tem que haver algum desassossego, uma certa capacidade de resiliência."
E escreveu "Na Quinta do Norte":
Algures alguém está viajando furiosamente em tua direcção
a uma incrível velocidade, viajando dia e noite.
Através de planícies geladas e desertos escaldantes, transpondo correntes, esgueirando-se por desfiladeiros.
Mas ele sabe onde te encontrar
Reconhece-te quando te vê
Dá-te aquilo que tem para ti?
Arduamente algo cresce aqui,
Ainda os celeiros estão a rebentar de alimento
Os sacos de farinha empilhados até aos tectos
as correntes correm suavemente, alimentando peixe;
Pássaros escurecem o céu. Isso é suficiente
que um prato de leite seja colocado à noite na tua mesa,
O que pensamos dele por vezes,
por vezes ou sempre, com um misto de sentimentos.

A piedosa interpretação de uma natureza morta


Foi o primeiro investigador criminal a chegar junto do cadáver, deparou-se com o cabo esculpido em madrepérola do punhal, no peito da vítima, no meio de um auréola de sangue e um rasgo vertical na camisa branca desfraldada
anotou num pormenor de um botão que navegara num rio vermelho que tivera a sua nascente debaixo do corpo
em decúbito dorsal
enfiava as luvas de borracha e olhava um pouco mais inquisidoramente o rosto do indivíduo mas este manteve-se em silêncio a olhar para o vazio
enquanto isso, somente a barba de três dias lhe sobrevivia, procurou afastar os seus ancestrais pruridos de tocar no corpo sem vida, aperceber-se da progressão da rigidez cadavérica, foi afinando a sua relação com o morto e com a morte
na televisão acesa prosseguia mais uma etapa do Tour de France, enfatizava-se a distância dos fugitivos para o camisola amarela mas a sua meta era agora outra, procurou distanciar-se dos estímulos que o cercavam
avançou na sua busca de respostas, nas mãos e nas unhas bem tratadas do finado arquitecto que não metia pelos vistos mãos na obra, que medidas terá falhado? que ausência de luz não lhe permitiu evitar a sombra
ou melhor se defender do inimigo que o derrubou?
tudo leva crer ter existido luta, não sendo tarefa fácil lidar com aqueles noventa quilos de peso, continuou sozinho
a lutar com as suas dúvidas e a sua sede, a matutar, a erguer os primeiros cenários
enquanto os colegas dos homicídios e do local do crime não chegavam, interrogava-se que inimigos poderia ter
um homem solteiro de cinquenta e cinco anos aparentando estar bem de vida, que lado negro ainda lhe poderia esconder, que culpa a vítima poderia carregar e levar consigo
percorreu o chão à volta do Vasco cidadão tentando encontrar outros vestígios e detalhes, a olho nu, salvo um chinelo de uma marca conhecida que ali estava à deriva, era uma mancha de veludo no soalho flutuante, antes do sofá de pele, paquiderme inanimado, tudo parecia padecer de uma estranha arrumação
uma cascata de luz dos “led" espraiava-se pela sala, iluminando a encenação das amálgamas de gente e de bichos a penderem dos vértices dos quadros de arte contemporânea, espreitavam-lhe agora o desvelo de investigador curvado, uma inusitada “madona" piedosamente atenta àquele corpo familiar surpreendente simulacro de amor
preocupado em eliminar hipóteses e sedimentar certezas tinha entrado em módulo de imersão total, naquela cúmplice solidão de quem já não tem mais nada dizer e de quem somente agora começou a perguntar, sempre
demasiado tarde, com maior ou menor oportunidade
verificou a cicatriz antiga de uma fractura da tíbia e perónio, observou as partes mais íntimas despudoradamente
e prosseguiu até à zona onde a lâmina penetrara fulminante na epiderme, independentemente da opinião da medicina legal, procurou perceber ângulos de entrada e reconstituir o gesto do agressor
na retaguarda gerou-se um expectável sururu, alguém dava gritos que iriam culminar em choro, o defunto
não ficou, particularmente, impressionado e tão pouco o inquiridor
continuou a viagem rumo ao pescoço, sondou a boca entreaberta, os olhos agora cegos, deviam ter sido acutilantes, habituados a definir rumos e traços precisos, o nariz adunco e as orelhas quase agudas,
acentuavam-lhe um lado fantasmagórico
teve um súbito arrepio, devia esperar que o colega o ajudasse a virar um pouco de lado o cadáver, para lhe verificar as costas, percorreu com o olhar o tampo de secretária, ali próxima, forrado com pele verde alguns papéis amarfanhados pareciam pássaros desesperados, em preparação para levantar voo, ficou esperançado em encontrar naquele frenesim de papel, alguma explicação dos enigmas que o assaltavam e a definir a direção das múltiplas que o levaria até ao autor
respirou fundo e olhou à volta, era melhor esperar pelos colegas que duas cabeças podem chegar mais longe que uma, vasculhou a cinza de uma lareira com uma tenaz e no final, apenas o pó de uma antiga chama ou de um desvario
foi junto ao parapeito de uma janela que entreabriu, pela frincha deixou entrar uma breve corrente de ar e encheu os pulmões e deixou o seu olhar sobrevoar o circo dos néons e pirilampos das viaturas da polícia e dos bombeiros
e voltou para dentro de si, que raio se passou aqui? a morte com punhal já não se usa, nem há romanos, nem florentinos, nem nevoeiros londrinos, na hodierna traição a morte é uma benção
Lisboa, 24 de Julho de 2016
Carlos Vieira

Que reste-t-il de nos amours - Mélanie Dahan


Poema da lágrima quase ocasional

Poema da lágrima quase ocasional
Encosta-se
a uma sombra tímida
de Verão
no meio da praça
onde se eleva uma lança
de água
uma pequena gota
salpica-lhe a solidão
demora o gesto
no rosto brutal
a limpar
a lágrima acidental
do homem
que no seu desencontro
apenas chora
por dentro.
Grândola, Julho de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Fotomontagem


Na sua cabeça
sobrevive o destroço
de sentimentos
e a alegria de pêssegos
sem caroço
enredos melodramáticos
iluminados
por centelhas de lâminas
nos becos
teias de pensamentos
inconsequentes
e a devastação das pragas
de escaravelhos
fora de si
apenas a luz
enviesada dos vitrais
cruzando
o desespero das orações
o frémito
das gaivotas
ávidas de despojos
rodopiam
à volta do fantasma
esquálido
a cambalear
vigiam-lhe
pacientemente
o estertor final
a máscara de dor
desconhecem
que dentro de si
não existe carne
nem sangue
apenas o vazio
um silêncio
sem cor e musical
feito do labor
das linhas de água
em camas de musgo
breves luminescências
raiam-lhe
no olhar deserto
vestígios de mágoa
e desamor.
Lisboa, 20 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Eterno retorno


A mera ausência
do terno gesto
a meio caminho
do teu rosto
de não saciar
a tua sede
deixou mudo
e eterno o Verão
deixar de poder
ouvir-te a ti
é como se
todos os pássaros
do mundo
fossem exterminados
é tornar-se peixe
que apenas habita
o mar profundo.
Esboço um jardim
suspenso
em memórias
à volta de perfumes
e da minúcia
e do detalhe
das sombras
que deixaste
que arrumaste
na nossa vida
dentro do poço
escuro de mim
busco a frescura
a subtileza
para as palavras
que podem
acordar-te
desse sono
e da loucura
do teu abandono
que só pode ser
a oportunidade
de reencontrar-te.
Lisboa, 17 de Julho de 2014
Carlos Vieira


O apocalipse após um sorriso


Ela
não se deu conta
daquela 
linha escura
que lhe descia
pela brancura
do rosto
nela
enquanto sorria
cintilava
a memória
de amêndoa
no sol posto
de um beijo
o mel
na janela do olhar
só soube
do sal
e da amargura
no amargar
do rímel
a entrar
pelo canto
da boca
só depois
perdeu a calma
e ficou louca
de uma loucura
definitiva
e sem alma.
Albufeira, 3 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Poema à inútil eternidade


O saco de plástico
cheio de ar
de nada
levanta voo
uma ideia
sobe sobe
o gesto evasivo
um projeto
de estrelas
o amor passageiro
que se escapou
uma subtileza
a história breve
a transparência
do saco de plástico
leve leve
precário
onde nadou
o peixe vermelho
e transportou
o pão e o tempo
paira o saco
uma nuvem
como um sonho
que vive e vive
um devaneio
de vento
onde vai cair
ninguém sabe
poluir o mar
amarrar de novo
o peixe
amarfanhado
no desespero
de um momento
estandarte
rasgado a drapejar
sobre o sofrimento
lembrando
batalhas
sem sentido
por fim
enterrado
num baldio
pulmão do vazio
respirando
no ar que lhe resta
a festa
do país da inutilidade
da sua vida eterna
e sem raiz
que o liberte
da obscuridade.
Albufeira, 3 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Primeiro dia de praia


Deito-me
na areia fina
na contingência
ausente
do seu corpo
dourado
e pressinto-lhe
peixes furtivos
mar bravo
beijos
de espuma
a despertar
memórias
entre farrapos
de bruma
de teus seios
ostensivos.
Lisboa, 2 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Foto de Alex Bramwell

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Agent Provocateur


Um pixel
esse beijo
de mordida 
digital
e o sangue
a esvair-se
em downloads
sucessivos
pelo território
de plasma
da solidão
alagada
no écran
vermelho vivo
a morte
devagar
frame a frame
navegas
porque amas
o cadaver
esquisito
que se ergueu
do tablet
em disparos
contra o tédio
à Tarantino.
Lisboa, 27 de Junho de 2016
Carlos Vieira


"Agent Provocateur" Clif Spohn

A exaltação do corpo e das estrelas


O acordeão
exaltava na planície
uma urgência
de brisa
aquela mão
sôfrega
desconcertante
a soltar
botão a botão
a sua blusa
a deflagrar
no seu corpo
uma constelação
de estrelas
onde rodopiava
a febre e a festa
tão pueril
o baile da aldeia
mas no final
sobrepôs-se
em êxtase
um caleidoscópio
de essências
numa loucura
de resinas
a adornar
em frescura
e fogo a pele
o corpo seminu
iluminado
pelo cinzel
da lua
crescente
dentro dela
sobre o pinhal.
Grândola, 25 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido


Imagem de autor desconhecido

Herberto Helder - Tríptico II


A uma sílaba de distância


Não mais
soletro
na tua pele
memórias
de flor de sal
e vestígio de mel
agora
na minha língua
apenas essa sílaba
antes do pó
e da lágrima
esse pigmento
ancestral
em que o pincel
só faz um risco
a ferir a tela
talvez a cauda
de estrela
e esse clamor
imaculado
da ausência
talvez o estertor
de um uivo
de lâmina
ou de trompete
interrompida
a nota final
no beco sem saída
do amor
ou da vida
tudo a acontecer
à boca da noite
a lua
já não será
tua mão aberta
dentro de mim
calou-se a melodia
o grão de oferta
agora cresce
sem razão outro muro
uma erva de ilusão
e clorofila
o teu gesto límpido
o sémen triste
constroem
outro futuro
onde vai irromper
esse mistério
que apenas
germina
no coração
em silêncio
e subsiste
uma convulsão
de lanças
e de pétalas
a esgrimir
num dia de sol
as sombras
que nos acentuam
a distância e o fim.
Lisboa, 18 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Memórias de Verão I

Memórias de Verão I
Foi numa noite de final de junho, ainda vinha até mim o murmúrio das conversas nas esplanadas misturando-se
com o estrugir das marés ao fundo, a maresia e o perfume dos cafés produziam uma estranha excitação o reencontro da melancolia estival. Estava cansado resolvi ir dormir.
Porque depois suceder-se-ia o passeio nocturno na marginal, de um lado, os automóveis ruminando de mansinho, os namorados de mãos dadas com promessas vagas, as famílias a lamberem colectivamente gelados de cone de baunilha e chocolate e conversas desinteressantes e despreocupadas, do outro lado, a brisa marítima e a areia molhada, haveria matizes de azul conforme havia lua ou era varrido o mar pelo farol, nos olhares sorriam romances de espuma e em silêncio engendravam-se projectos de tudo ou nada com filas de barracas brancas vazias.
Nessa altura acordei estremunhado, com o ruído dos bombeiros a entrarem pela janela, tinha-me esquecido da porta fechada com a chave por dentro como nos sonhos, junto à minha cama, ouvi uma voz feminina surpreendida de anjo com capacete que comentava:
"- Mas o seu filho já é tão grande!"
Lisboa, 13 de junho de 2016
Carlos Vieira

ACRESCENTA ISTO À RETÓRICA


Posa, posa e posa.
Mas na natureza apenas
Cresce. As pedras posam
Ao cair da noite, e os mendigos
Quando dormem também
Posam com seus trapos.
Bolas... cai o luar de lavanda.
Os prédios posam no céu
E, quando pintas, as nuvens,
Grisalhas, peroladas, profundas,
Pftt... No modo como falas
Arranjas, a coisa posa, o que
Na natureza apenas cresce.
Amanhã, quando o sol,
Apesar de tuas imagens,
Retornar como sol, fogaréu,
Tuas imagens não terão
Deixado nem sombra
Do que foram. As poses
Do discurso, da pintura,
Da música – o corpo dela jaz
Exausto, seu braço cai,
Seus dedos tocam o chão.
Acima dela, à esquerda,
Um toque de branco, o obscuro,
A lua sem forma,
Um olho debruado numa cripta.
O sentido cria a pose.
Nisso, se move e fala.
Esta é a figura, e não
Uma metáfora esquiva.
Acrescenta isto.
É para acrescentar.

O fiasco


que o fiasco
seja apenas o momento triste
de um reencontro
com a nossa frágil condição
e da beleza
que existe escondida
na perspetiva
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Um lince de papel


De súbito
um salto felino
dos caracteres dos jornais
numa breve
o reflexo de um avistamento
a distância em silêncio percorrida
surge-nos na densa mata
das notícias
ao mudar de página
e nela desaparece
entre imagens de destroços
de um morteiro na Síria
o fogo da sombra sarapintada
no lince da serra da Malcata
preenche de espanto
dos apartamentos
de animais domésticos
e homens mansos e dos outros
em vias de extinção
e devora a boa consciência
das manchetes
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Ella Fitzgerald - Between The Devil & The Deep Blue Sea (Verve Records 1961)



I don't want you
But I hate to lose you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I forgive you
'Cause I can't forget you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I ought to cross you off my list
But when you come knocking at my door
Fate seems to give my heart a twist
And I come running back for more
I should hate you
But I guess I love you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I ought to cross you off my list
But when you come knocking at my door
Fate seems to give my heart a twist
And I come running back for more
I should hate you
But I guess I love you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea






O mar dos meus olhos


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma
Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6/11/1919 – Lisboa, 2/7/2004)

Memória dos amores de Verão


O cerzir do véu
do olhar
temperado
por um solfejo
de espuma
essa fragância
da maresia
que se escondia
no sabor
das partículas
do seu corpo
eram também
a breve memória
da resplandecente
constelação
de um amor inominável
e fecundo

do marejar nas noites
de insónia
a infinita solidão
lançadas ao mar
as cinzas
do seu mundo
Lisboa, 10 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Nu Azul - Picasso

Poema para o mar interior


Dentro de mim
um mar encrespado
uma iminência de naufrágio
do navio uma pungência
não te vou acordar
agora que temos a vida
por um fio
não possas tu
confundir o amor
com esta nunca resolvida
urgência de partir
uma espécie de música
de oceano dentro de nós
aprisionado
manancial de vida
feita de outras tantas mortes.
Lisboa, 10 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Maelo Tarkin

La Poesia


Provérbio japonês


Federico Garcia Lorca II


Federico Garcia Lorca