quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A alguns pés de profundidade


Aqui permaneço
quase imóvel
desço
a direito
neste abismo
náufrago
deste cansaço
neste papel
de regresso
à máscara
em que de mim
me esqueço
neste mergulho
em apneia
no estupor
da superficialidade.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira

    Imagem do Blog “iz’s Sketchblog”


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Uma rapariga, a Vespa e um sonho


De cabelos castanhos
soltos
fulgentes
como se fosse um sonho
a vespa
soltou-se da floresta
e  atrás de si
trazia a madrugada
em azul metalizado
ou será
que tinha o cabelo
amarrado
a um lenço
a um sonho motorizado
que a seguir
se esfumou  na névoa
que se tinha
levantado?

Lisboa, 30 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira

                                              Imagem de CayBroendum_com Illustrations

domingo, 27 de janeiro de 2013

Natureza quase morta II


 

Articulando sílaba a sílaba

a esplanada

os destroços de um veleiro

onde um pardal

ia debicar migalhas

de uma viagem interrompida,

por detrás do livro

de asas abertas,

devorado pelo esquecimento

esconde-se um rosto

onde se adivinhavam nuvens

e páginas

prenhes de uma nova tempestade,

o cachorro

alçava a perna

e mijava as cadeiras

assinalando a posterioridade

 

Lisboa, 27 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 
 
                 “Terrace of Monmartre” de Vincent Van Gogh

sábado, 26 de janeiro de 2013

Habeas Corpus VI


 

 

Expulsaram-te

do país sonhado

que pensavas ser teu

agora de braço dado

vais com o vazio

ao longo de uma indefinível

fronteira de solidão

agora atravessas

esse território

envolta do medo apátrida

carregando

esse destino inseparável

do que fomos

por essa estrada

que só tu conheces

vulto ávido de encruzilhadas

ali onde não és de ninguém

só ao nada pertences

tão despojada

que nem a ti te possuis.

 

Lisboa, 26 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 

                                                           Imagem de autor desconhecido

Habeas Corpus IX


 

 

Circunscrito

no silêncio vespertino

da normalidade

fito a serena transparência

de um pisa papéis

senhor de si

do seu lugar

da comoção imóvel

das lágrimas de vidro

gela na sua mão

depois na sua alma

como se fosse

uma grande lágrima

nesta noite

com o peso exacto

da sua solidão

indizível.
 

Lisboa, 25 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Habeas Corpus V

Era uma vez
um maldito peixe
devorando as margens
rindo-se da casa em ruínas
onde afogueada
sobrevives.

Era uma vez
o triste enredo da carne
na tímida cortina
onde te escondes
do desejo
que te consome.

Era uma vez
em que subias
vagamente  de sandálias
e tropeçaste
fazendo  entornar
a madrugada.

Era uma vez
tu e a tua fragância
fluorescente
surpreendendo a alameda
cercada
por um triângulo amoroso.

Era uma vez
em que ias regressar  saciada
de quase nada
estremecendo na penumbra
de quase tudo
apagada
num curto circuito .

Era uma vez
uma sardinha
de melancolia prateada
suavemente
pousada sobre a bondade
de um pão de milho
e tu esfomeada.

Era uma vez
em que te bastava
o benefício
de viveres à margem
para em troca
entregares todo o teu amor
desesperado
às piranhas mundo
a benefício de inventário.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira

                                                    “ Alone” por  Lizzie Borden

domingo, 20 de janeiro de 2013

Habeas Corpus IV



Tendo sido vetada pela autoridade competente

a entrada no país

corre agora dentro de si toda a sofreguidão do rio

em busca da raiz

das palavras

barcos que descem intrépidos até à foz

desfazendo nós

das palavras

temerosas da voracidade dos peixes e quedas de água

os remos afagam a mágoa

das palavras

que se afogam em formulários

preenchendo a sua vaga naturalidade

palavras ansiando

represas e a emoção da língua

vencem a bruma

as suas mãos de uma brancura fulgurante

sem palavras

reconheces o diálogo das pedras entre a espuma

que pode ser o teu país

em silêncio

porque as palavras podem ser usadas contra si

o fulgor de arestas do teu olhar

a soletrar

os contornos da ausência

da tua vida

à deriva

do teu corpo a divagar

sem pestanejar

sulcando-o um pequeno fio de sangue

visando

o passaporte para uma outra vida

outro país

definitivamente apátrida.


Lisboa, 20 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

                                                         Pintura de Alfredo Aquino

sábado, 19 de janeiro de 2013

Habeas Corpus III


 

 

Interdito

era o gesto destemido

que se cruzava em pleno voo

no interlúdio de um olhar

desencontrado

o pássaro assustado

e o rumor da seiva

de um  jardim proibido

na persistência da corola

que se oferece silente

ao ligeiro insecto

que laborioso

decifra a senha de acesso

ao coração do tempo

um búzio de fogo

na tua mão

 intrépido.

 

Lisboa, 19 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 
                                                             Imagem encontrada em Zazzle

Habeas Corpus II


 

Delimitada

a luz sobre um pensamento

sobre as ideias fixas

depois que a ave do desejo

traiu a fuga mais ousada

refugiando-se num corpo ancorado

adivinha-se na corrente de ar

da gruta ancestral

uma luz ao fundo do túnel

germinam as asas

no húmus da sombra

que te libertam da penitência

e pacientemente

teces a alegria silenciosa

de organizar o caos

 

Lisboa, 19 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 
 

 
"Organizing Chaos" no site Nikinotes
 

 

 
 

 

Habeas corpus

 
 
 
 
 
I
Proscrito
nunca na sua vida
lhe foi permitido entrar
no reino vegetal da palavra escrita
apenas de uma flor imaginada
se solta o perfume
de um rosto antigo
e uma ilha desconhecida
no rumo de um navio
enquanto na sua boca
uma língua morta apodrecia
enquanto os pássaros
que fizeram ninho no seu peito
lhe percorreram as artérias
e atravessaram a paisagem
de grades de ferro fundido
que ganharam raízes
dentro de si.
 
Lisboa, 19 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira
 
 
“Pomba da Paz” de Pablo Picasso

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A espargata...

A espargata
nunca a consegui fazer
não tenho inveja
de quem tal consegue
no entanto
esta desprezível limitação
tem-me perseguido
nos últimos tempos.
Sempre fui duro de rins
pouco dotado de equilíbrio
e com medíocre sucesso
nos exercícios de solo
nessa coisa da flexibilidade
ou nos trampolins
avesso à  democracia musculada
ainda sinto a censura do olhar
que me fulmina
a quando do libertador
exercício de espreguiçar-me.

Lisboa, 15 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira


sábado, 12 de janeiro de 2013

Agora, o apocalipse



A guerrilha das palavras

despedaçadas

articulando a esperança

o dedo que percorre

nervosamente

o espaço da necrologia

ao encontro

de todas as mortes.

 

Depois a carta oficial

a certeza da mina

da surpresa do voo

a propaganda

dos danos colaterais

o mito

da inevitabilidade

e o elogio do destemor

na trincheira

da tinta permanente.

 

Alguns relatos

referem um imbróglio

de corpos e de membros

por identificar

onde alguns vislumbram

o espírito de missão

outros apenas a carne

que foi para canhão

exposta ao sol

os seus ocupantes

vítimas da emboscada

dilacerados e irreconhecíveis

só os familiares

irão com certeza ver

as medalhas nos seus belos

estojos

há muito compradas

e os discursos

de um justo reconhecimento

e a bandeira dobrada e engomada.

 

Uma aventura de heróis mortos

numa confluência de águas turvas

e páginas revoltas de vergonha

na margem do rio

e da razão dos répteis

e da algazarra

da destruição massiva

no céu

as colunas de fumo

e balas tracejantes

os very-lights

“sejam bem vidos à festa!”

 

O soldado reza

por alguém que se esvai

e depois vai-se

a vida continua

a limpeza e o saque

feitos à pressa

a evacuação

no helicóptero que demora

tornando

irremediavelmente

tardia a transfusão.

 

Uma ração de combate

no “cu-me”

do medo

do desespero

naquela mão decepada

abandonada

no campo da batalha

absurda

de baionetas caladas

enquanto semi-deuses descem

sobre a terra queimada

de pára-quedas

indiferentes

ao fogo

das antiaéreas.

 

O pelotão

camuflado na linha

de água do tempo

sem saber da morte

à sua espera

na próxima curva de nível

o estampido

um clarão e um cheiro

a pólvora queimada

e o silêncio derramado

um breve sorriso inimigo

no canto da boca

tudo diz

e não digo mais nada.

 

É imperioso

sair dali depressa

e mete o cantil aos lábios

desde há muito que a sede

é a sua amada

é ela que o desvia

deste trilho que percute

por entre a névoa

a flor acesa e acidental

de uma rajada

de “metralha-amadora”.

 

Se bem que aqui

nada acontece por acaso

até para cagar

está prevista uma estratégia

estão previstos

os números de mortos

de urnas

e de viúvas

de velas e orações

de filhos de valentes

e de cobardes

de legiões de estropiados

apenas existem porém

dúvidas fundadas

sobre o número de noites

de insónias.

 

A voz de comando

ajuda-nos a sobreviver

no meio da selva

e do betão

o tão traiçoeiro

franco atirador

tão certeiro

e as granadas como aves

a voarem sobre os muros

a entrarem-nos

pela casa dentro

o caos do salve-se quem puder

tudo isto

acredita-se

pode causar

algum desconforto.

 

Os tanques

esmagam a primavera

fechada a escotilha

naquela torre

onde sonhamos

as dunas da praia

cegos pela areia de deserto

erguem o membro fálico

“fodam-nos a todos!”

ordena o comandante

que mais pode ele dizer

que mais podemos fazer

são eles ou nós

“estatística-mente”

se bem que pudessem

ser eles e nós

ninguém é de ninguém

e eu não sou de intrigas

tudo em defesa

da democracia

ou da nação

ou dos mais nobres princípios.

 

Lisboa, 11 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Três árvores pela manhã




Nos caixilhos da janela
a manhã
é um pinheiro polar
esquartejado
a destilar
reflexos antigos de prata
e a percutir  
filigranas de ouro
contemporâneas
apenas lágrimas
talvez de chuva.

A manhã
é a nobreza dura e nua
que sai da cama
estremunhada
ferindo as nuvens
faia perturbada.

A manhã
é uma cipreste
sobre a esquerda baixa
essa árvore de explicar horizontes
que melhor podem esconder
a conspiração dos pássaros.

Três árvores
para fazer um jardim de Inverno
a quase floresta
onde corre a seiva secreta
e renasce o fruto
dessa manhã
janela dos homens
da sua existência vegetal
que na raíz
do nocturno percurso
teimam em acreditar.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A imprevista luminosidade dos lugares


Aqui estou junto do poço
nada procuro
nem a morte
nem o amor
nem a infância
bastava-me
aquela recordação de urtigas
e de hortelã
fustigada pelo rumor dos insetos

Encostado ao pequeno muro
De tijolo
que da minha eternidade me separa
vou descendo
até ao mais profundo reflexo de mim
na superfície da água
para nada
nem sei para quê
não sei como cheguei aqui
ao poço deste tempo
e porque puxo na roldana
mais um balde de água fria.

No entanto
na concha da minha mão
os pássaros podem vir beber
o cântico flamejante dos peixes
a sombra cristalina da árvore
que surpreendida estremece
do meu súbito mergulho
num júbilo de tangerinas
duvido se tudo isto servirá
para coisa alguma
nem toda a gente gosta
do perfume das cascas.

Lisboa, 7 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira

sábado, 5 de janeiro de 2013

Breves apontamentos de uma paisagem polar


A avioneta

                   era um punhal aceso

                                                          na vertente sul

 

nos binóculos dança um vulto negro

                                                       só ou oculto

                                                                      nas asas da neve

 

o veneno na zarabatana

                                           a verdade nua e crua

                                                                          trespassada na estepe                                                                  
                                                         

 
num cerco

                 de lobos e de sangue  

                                                       o branco derramado

 

no cockpit do poema

                                   a embriaguez

                                                         do deserto e das alturas

 

a brevidade dos líquenes

                                         e o estrépito das hastes

                                                                                    o oiro fugaz das renas

 

enquanto o caiaque pronuncia a suavidade

                                                                       do degelo

                                                                                   os salmões cruzam o sol da meia noite

 

impossível é a missão de salvamento

                                                   dos soterrados nestas noites em branco

                                                                                    nas avalanches de solidão e esquecimento.

 

Lisboa, 5 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 

 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

No rasto do teu silêncio VI

 
O teu rosto é um astro
que adormece no meu colo,
as minhas mãos
nuvens pousadas no poema
bússola de luz
que te olha de frente,
não ouço nada, nem ninguém,
só no silêncio te reconheço
e só desse quase nada
posso sobreviver,
as minhas mãos
são eternamente asas
do desejo de te reencontrar
e na fluorescência
desta poeira cósmica
irei decifrar
as nossas primeiras palavras
de volta à órbita
do nosso amor extravagante.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira
                                                “Astral Travelling” by Petrovsky+Ramone