sábado, 30 de junho de 2012

Janiva Magness - You Were Never Mine

Natalie Merchant-Kind And Generous

Stephane Grappelli e Yehudi Menuhin - Soon

a palavra desconhecida

 

a haste da palavra

curvava-se sobre um rio imaginário

numa paciência de cana de pesca

sobre o século

onde a corrente

de olhos semicerrados

prossegue exausta e indiferente

manuseando o seu realejo de água

onde aflora a memória em remoinho

da nudez dos corpos jovens

o reflexo dos peixes

e a fragrância de margens

a destoar

apenas a sombra ténue

do rouxinol que tinha sido devorado

pelo salgueiro

isso foi suficiente

para que a palavra se desprendesse

e flutuando levada pela corrente

precipitou-se no açude

sem dizer nada



Lisboa, 30 de Junho de 2012

Carlos Vieira


                                         “Words in the wind painting” por Ruben Monzon

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Dolores O'Riordan e Sinfonia Varsovia - Zombie

Lucia - Silence


viagem sem regresso

viagem sem regresso

oiço o alvoroço
o enigma de seiva redonda
que a tua língua decifra
na fruta madura e límpida
... e as pegadas no trilho perene
do tigre no teu desejo relâmpago
nos lábios de sal tremendo
tu espreitas na espiral da onda
após um tranquilo lençol de água
onde deflagra a raiva e a luz
e o gesto tímido e macio da lua
que se apaga ao fundo do túnel
e se acende neste bolinar de barco
que navega intrépido nas tuas coxas
contra a parede de musgo e de líquenes
saboreando o teu mistério de florir
doce semente que esquecida
estás do esplendor das colheitas
meu altar de solidão e espuma
para onde a intempérie te varreu
minha inevitável falta de sentido
que te faz deflagrar numa audácia
de pétalas e de penas
num sôfrego rumo de ternura
até ao intenso estertor do teu torso
que depois transporto

desmaiado nos ombros
e agora juntos

prontos a degolar
a jugular da normalidade
da volúvel memória
que impede que cresçam as asas

de uma nova loucura


Lisboa, 27 de Junho de 2012
Carlos Vieira
 






                                            “An other love story” Cecília Westberg




Dynamo walking on water HQ

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Príncipe das trevas






na noite escura

a humanidade é um rabisco tosco, traço aceso do lápis de carvão, cujo vigor se vai esbatendo

no precipício branco da página com assinatura reconhecida

no ardor da luta

a escrita mais pungente são hieróglifos, feita das cicatrizes dos soldados com mais ou menos

pontos, evidências de danos colaterais

essa alma de fraga

feita de barragens e de quedas de água, nos rápidos percursos da vida do alcatrão e do

cimento e das energias alternativas

fé indómita

de peregrinos e empreendedores, articulando orações, cunhas, encruzilhadas, carreiras,

atalhos, futebol e currículos

loucura de sílex

sobrevoando o céu e a terra leva-os consigo, não lhe cabem no peito, emergem às golfadas,

punhais e punhos de renda dos negócios, semeando estratégicos vendavais

vai duende e arauto lúcido

que percorres avenidas e becos e conta as histórias, apenas histórias, que outra coisa nos

podem contar, estes novos duendes, depois de jogarem na bolsa e no totoloto

neves eternas, vegetação luxuriante e animais portentosos

ninguém previa sua morte fulminante, naquela estação de inverno, de um período com

“forfait” incluído, naquele ano só farias pistas vermelhas

no entanto já lhe chegara aos ouvidos

pássaros de insónia e da montanha

cujo canto atravessa o deserto e se afogam de inveja, nesses oásis que são as áreas de

paisagem protegida, depois de não sei quantos “Valiuns”

estou aqui ao balcão desse manancial de seiva e sol

que alimentam a minha sede de justiça, da raiva justa dos rebeldes e a cirrose, de água lisa em

copo alto com duas pedras de gelo, meu amigo dá de beber à dor

na insólita manhã

onde todos dormem e desconhecem o sucesso vespertino dos burocratas, as manchetes que

vendem o relevo dos escroques e medíocres e ligam a ventoinha com que espalham a lama

brotam na árvore nua

nesse espectro dilacerado das lâminas da indiferença e de animais abandonados e flores de

metal

que falharam por uma unha negra uma zona vital

véspera de chuva ácida

de mão esgarçadas e de bocas ávidas, desconhecendo a essência das palavras, estamos em

seca estrema

e tempo estreito

vertigem de um olhar atónito no vazio, nesse magro pecúlio de uma vida inteira, “jaz morto e

arrefece” o corpo de um ladrão, depois do furto formigueiro

olha a colheita escassa

beijada pelos pés descalços da brisa, enfeitiçada do canto que não conhece a esperança

fechem a porta, cuidado com as correntes de ar e os cartões de crédito

vento norte

país do sul de gente inquieta, aguardando o tempo do regresso ao sonho dos barcos cansados

apaga esse ar envergonhado da periferia, de não conseguires pagar o empréstimo

mar rouco

ruminando o sal e vigiando o quarto crescente e a inacreditável destreza dos peixes nos corais

mar da frota desmantelada e de pensão completa e de reforma adiada

silêncio antigo

cúmplice das festas caladas no território dos sentidos, de corpos que só agora desceram das

nuvens, acorda meu amigo da noite escura para a dura realidade

e aguenta estóico


que é sempre tempo de escrever

e virar nova página da mesma vida

vai sendo tempo de uma nova vida

de uma nova morte


Lisboa, 25 de Junho de 2012

Carlos Vieira


domingo, 24 de junho de 2012

Kira Skov Flower of the evening

a minha alegoria da caverna

no meu sonho de gruta

há um veado ferido
que cintila amordaçado
na ancestral pintura



ali acredito na noite
de um beijo e ponho o dedo
na ferida da pedra
e acredito no que vejo



uma nota breve ou brilho fugaz
uma palavra dura ou súbita dor
estou perdido perseguindo
a sombra e o que não vejo


porque ficando cego
na clarividência da contraluz
apenas invento a constelação
etérea do que me seduz



Lisboa, 24 de Junho de 2012

Carlos Vieira

Birdy - I'll Never Forget You

Garforth e Myers - Bonfires

sábado, 23 de junho de 2012

Vassilis Tsabropoulos - Gift of Dreams

Hope Sandoval e The Warm Inventions - Blue Bird

Walter Benjamin - Mary

Manos Hadjidakis - Nightly walk Νυχτερινός περίπατος

Vislumbre


canto de pedra

bruta

que se esconde

que se esvai

pelas entranhas

da terra

que em ti se escuta

que em ti perdura

nas lágrimas

que moldaram

a gravidade

do teu busto

que aguarda

o nunca esquecido

vulto de um amor

que partiu

tão jovem

que não chegará

atrás da cortina

à janela da tarde

de cantaria

onde cresce

a flor que irrompe

a raiz do apelo

da alegria breve

que bate

no incógnito

coração do tempo



Lisboa, 23 de Junho de 2012

Carlos Vieira

                                                                    “Waiting” por Shimoda7


quinta-feira, 21 de junho de 2012

dois potros...


dois potros

no longo prado verde

na rima do galope



belas as crinas

do que era em verso branco

e também do preto



depois o laço do poeta

a visão do coice

em que viu estrelas



o tropel e a cor

da poesia que cresce

no rumor da erva



montar em pelo

as palavras na rédea curta

das estrofes





Lisboa, 21 de Junho de 2012

Carlos Vieira

                    Khwa ttu - When we meet Paul, the Peacemaker of the Native American Odawa

domingo, 17 de junho de 2012

Paisagem urbana do amor imaterial


o semáforo

essa árvore cansada de cores

surpreendente gaiola de pássaros onde te surpreendi



os néones

são pássaros na demência da luz

são palavras inquietas e sôfregas na noite dos nossos corpos nus



pela alameda

nossa rua larga onde as árvores se encontram

para os amantes  malditos se esconderem e se beijarem



a esplanada onde te vi

era um navio ancorado onde os homens

fingiam aventuras e viagens à volta de um café com ou sem açúcar



a zebra

animal do asfalto

leva-me depressa até ao outro lado do sonho



no beco

onde eras a vítima que se encontrava cercada

e nessa altura abria a porta para que pudesses entrar no poema



eis o largo

onde podemos ver tudo e todos nos podem ver

todos a desejam, todos a podem roubar, depois da minha espada



no chafariz

água fresca e sede antiga

corre na torneira onde se lava as mãos e refrescam as ternas memórias



pelo parque

a raiva e a tristeza pedalam

passam por nós, cabisbaixos, na reviravolta dos guiadores das bicicletas



vais de metro

onde todos cheiram o óleo queimado nas travessas

e sentes, agora mais perto de ti, o coração que está ao teu lado



toca a campainha

insiste para o rés do chão da tua amada

do outro lado, a sua voz eléctrica ou o silêncio ensurdecedor



nas sete colinas

estávamos exaustos no tropel do amor

dos sonhos bêbedos de luz e o cavalo levava o freio nos dentes



paragem do 15

as bátegas de água fustigavam o acrílico

sobre a memória que resta do teu rosto escorre a água da chuva



no passeio

mudei para o outro lado

naquele dia não sei se me trocaste as voltas ou as regras do jogo



os bancos de jardim

são imperfeitos esqueletos de árvores

onde se sentam no princípio e no fim da vida, eternos, o amor e a solidão em osso



ia à farmácia

ficava atónito de tantos cheiros  e esquecia-me dos recados  

encantado da arrumação dos remédios e da resistência do coração da minha avó



as sargetas

eram bocas de palavras putrefactas

pode-se ouvir além do rumor do esgoto, o rio no reflexo de prata dos peixes



no sinal de trânsito

tu esperas anoréxica, imóvel e erecta

não tens que dizer nada, irei contigo, tu és o meu sentido único e proibido



o marco de correio

onde deixei a carta, poço de segredos e de saudades

as palavras e os endereços acotovelam-se na sua urgência de partir



na cabine telefónica

as minhas mãos estrangulam o fio do ausculta(dor)

do outro lado contorcendo-se na cama, tu mordes os lábios, o gosto do teu sangue



da torre mais alta

olhas a extensão da minha cidade

ali está a meus pés, quase tudo o que juntei para te dar



do zoo

todos os animais passaram perto da minha infância

vou em cima de um elefante ou há um fosso na minha memória



o liceu

esse intervalo da alegria que me confunde

de todas as perguntas e testes, de todo o amor  interrompido pela campainha



aquele lago

era um relógio parado na sombra do tempo

reparo na profundidade do teu olhar e remo depressa para chegar a terra firme



no jardim

de escorregas e baloiços as crianças jogavam às escondidas

naquele tempo os adultos viviam às escondidas, não eram para brincadeiras



naquele candeeiro

céptico tutor das trevas

apaga-se o espectro de um vagabundo pois nele triunfa a tua luz interior



vieste comigo dos museus

tu eras todas aquelas belas mulheres que trazias

Impressionava-me a abundância da sua carne e o segredo macio da sua pele



vou ao café

bebo tranquilo as amargas notícias do jornal

pus demasiado açúcar depois de ler perdidamente o teu olhar



água furtada

é um sonho recorrente

o vórtice de telhados, onde, ao teu colo, podia ser eu o gato sentado que sorri



aeroporto

tu, as filas do check-in e os aviões na placa

e a merda de vida, de quem tem de, literalmente, voar entre uma coisa e outra



desço o elevador

venho do firmamento e das nuvens

deixei a cama desfeita, nos contornos dos lençóis paira teu perfume



na biblioteca

andava há dias a ler o mesmo livro

as tuas pernas passavam-me uma rasteira, a cada virar de página



vejo-te na ponte

o seu tabuleiro e seus pilares, pintados de vermelho de segurar a lua

velas brancas sulcando no rio azul, tu dormes e eu já não encontro posição



nas urgências do hospital

foram tantas as noites brancas e as batas brancas

olhavas para os resultados do ECG e para prova de esforço  e ficavas pálida



cais

de onde nunca parti

por mais que os teus pensamentos mais chegados, me deixem saudades



eléctrico

esse surreal meio de transporte

no cruzar dos fios e no chiar das rodas, nos carris faiscava o nosso amor em curto-circuito



ambulância

vai aflita pela rua acima

apaga por breves momentos a solidão de todos os transeuntes, por instantes deixei-te ir



meu castelo

entre tuas ameias pouso o arco e as flechas

estou sitiado há vários dias da beleza dos teus seios, desse doce veneno, nunca me canso



no peito uma gaivota

amante dos abismos e do silêncio

sobre o terramoto da cidade e da tua ausência a fúlgida elipse do seu voo



o azulejo

na parede do vazio é uma secreta flor e um beijo húmido

no chão do pátio os mosaicos osculam teus pés que derrotaram o deserto



Lisboa, 17 de Junho de 2012

Carlos Vieira


                                                           Pintura de Nadir Afonso

sábado, 16 de junho de 2012

Lars Danielsson - The Linden

a vida por um tri(s)te


a vida por um tri(s)te



regressa à página vazia

a esse torpor húmido

de uma primavera sem flores

à asa suspensa

no aparo do medo

dentro de si procura a palavra

a raiz primordial

rastilho para o grande “boom”

do princípio de um novo mundo

as sôfregas mãos

presas nessa hidráulica

que liberta a corrente

da humanidade

que faz cair o pano

e o atordoa do espanto das aves

fósforo que acende o sorriso no olhar

o dedo a florir no gatilho

espreitas no longo cano negro da vida

o dourado projéctil

que tornaria vermelha a solidão

sem um pingo de tinta no coração

ele ali está exangue

depois da noite em branco

de regresso ao “felizmente à luar”

da última folha

ao deve e haver do amor e da morte

às estatísticas

de uma maior esperança de vida



Lisboa, 16 de Junho de 2012

Carlos Vieira

                                                      
“La Page Blanche” René Magritte

Extrato de texto de Philippe Sollers

"Num só Inverno já foram recenceadas mais de cem mil gaivotas pequenas n Île-de-France. Vindas do Norte (Países Baixos, Alemanha, Báltico, Bélgica), riem no céu de Paris. damos com elas nos lagos dos bosques de Vincennes ou de Boulogne, ou ainda nos Buttes-Chaumont. Dormem juntas, às centenas, na superfície aquática. A comida espera-as nos sacos plásticos que forram as latas de lixo das ruas ou do...s pátios dos prédios. Os seus territórios predilectos são os terraços e os espaços saibrados, mas também os aeroportos onde se podem divertir a morrer nos reactores dos aviões, armadas em autênticas terroristas. Aqui na ilha, muitas vezes voam em círculos e aos pares em torno de nós, planam, parecem defender o horizonte, por vezes tentam incursões na erva quando faz muito calor ou o temporal ameaça. Por um instante contemplo a covinha que tens a cima da bochecha esquerda, mão encostada à têmpora direita, a orelha despegada comestível, os dedos, o nariz fino. A questão que reaparece é a da "própria pureza". Isso, não esperava eu. Tu escutas, falas, voltas a escutar com ar sério, sorris, és uma paisagem mutante, passas, a mão pelo cabelo curto, o indicador volta-te um pouco à orelha, ao lóbulo da orelha, o polegar aflora-te a face, tornas-te frágil, mas não, eis-te de novo com força e fulgor. Levantas-te, vais procurar cerejas, que palavra magnífica, cereja, sem falar daquelas que esta induz, morango, framboesa, amora, ameixa, azeitona, mirtilo. Outras tantas sílabas para comer. Sentas-te de novo, atiras com os caroços para as ervas, suspiras, atas outra vez o lenço negro ao pescoço, vejo-te melhor uma das veias, bocejas, um gestozinho da mão direita em frente dos lábios. Dizes que tens sono, que vais dormir, deixas atrás de ti a tarde à contemplação vazia."

A ESTRELA DOS AMANTES

PHILIPPE SOLLERS

The Ingmar Bergman Prophecy

quarta-feira, 13 de junho de 2012

natureza morta da insídia



são ínfimos os fragmentos

talvez sejam porcelana antiga

que não resiste à minúcia de um olhar

descortinando o ardil



o esvoaçar da cortina

permitiu o fulgir da louça frágil

e perceber a sede acesa do lugar

na perplexidade inocente da carne



oiço a brisa de um alaúde

e a penumbra do perfume já distante

de uma pérfida Cleópatra

o papiro respira a amável escrita



no perímetro do vinho derramado

adivinhavam-se partículas do veneno

nas arestas de suor e nas esquinas

espreita a náusea e o véu do poder



após os cálculos desfeitos em pó

que tinha pairado nas horas mortas

intuem-se as vozes ciciadas

em ciladas mínimas mas bastantes



rastejam nos relógios vigiados

veludos não anunciados e perversos

na miríade de vestígios de carícias

sofre a nudez breves golpes de luz



Lisboa, 13 de Junho de 2012

Carlos Vieira



“A negação de S. Pedro” de Caravaggio

O Amor

Aragon:

" O amor é a única perda da liberdade que nos dá força": esta frase que ouvi à pessoa a quem mais quero neste mundo resume tudo quanto eu sei sobre o amor.
Quando o amor exige o sacrifício de tudo quanto faz a dignidade da vIda, nego que isso seja o amor.
Não posso passar sem a presença da pessoa amada. É possível que isso seja uma enfermidade."

DO AMOR ADMIRÁVEL E DA VIDA SÓRDIDA

lady and bird- the ballade of lady and bird


terça-feira, 12 de junho de 2012

Amores de Verão VII


Foi nesse tempo que amou, sem reticências, a sua primeira professora. Foi ela, que só por estar ali, o ensinou sem saber, depois das letras brancas de giz e português escorreito, toda a ternura do fim do Verão.

Ele lembrava-se das suas mãos sujas de óleo, na corrente de bicicleta dela, dos segredos que lhe contou, de todas as ondas que amansou por ela, da sua elegância, do seu precário equilíbrio.

Podia até falar de todas as vezes que vigiando-a, a salvou do esquecimento e do seu sabor a sal, um paradoxo de ingenuidade com o cabelo em desalinho.

Tantas foram as vezes que correu atrás do chapéu e depois lho devolvia, como se fosse uma pomba, aguardando o seu inesquecível sorriso agradecido.

Quantas foram as vezes que ele sonhou o seu saber tranquilo, nas suas pernas cruzadas e o gelado de baunilha, a escorrer-lhe por um canto dos lábios.

Recordo-a no final da praia, de fato de banho claro, a cor foi-se desvanecendo com os anos, ela e o rabo-de-cavalo dos seus cabelos louros, iam de encontro à falésia, havia o inevitável reflexo dourado da areia, que para o efeito, podia não ter tido qualquer influência ou teria sido esse ângulo de luz que a iluminou até hoje?

No fim da tarde uma maresia intensa, dentro de mim, um oceano de angústia e uma vontade indefinível de a abraçar, como se a acabasse de perder.

Já possuído das competências que ela o dotara, conseguiu ler e reler dias depois, a notícia cinzenta e triste, no jornal do país triste, nesse dia ainda mais cinzento, “jovem professora não sobreviveu em colisão frontal”.

No seu peito deflagrou um grito, as letras brancas do quadro negro e as letras negras daquele jornal, agora bailavam atónitas nas suas mãos, perante os seus olhos foram-se desfazendo, líquidas, naquele bocado de papel amargo.

Seria sempre mais adequado e razoável, um outro distanciamento, a verdade é que ia começar um novo lectivo, o estudo seria, certamente, muito mais produtivo.



Lisboa, 9 de Junho de 2012

Carlos Vieira


                                                                         “Jacket” por Jodoin

Amorosa antecipação


Nem a intimidade de tua fronte clara como uma festa
nem o costume do teu corpo, ainda que misterioso e tácito e de menina,
nem a sucessão de tua vida em palavras ou silêncios
serão dádiva tão misteriosa
como contemplar teu sono envolvido
na vigília de meus braços.
Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono
quieta e resplandecente como um destino que a memória escolhe,
me darás essa margem de tua vida que tu mesma não possuis.
Lançado à quietude
divisarei essa praia última de teu ser
e ver-te-ei, quiçá pela primeira vez,
tal como Deus há de ver-te,
desbaratada a ficção do Tempo,
sem o amor, sem mim.

Jorge Luis Borges

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Amores de Verão VIII

 

Quase podia ouvir

os teus pequenos passos

estudados para o encontro

furtivos

por detrás das grandes rochas

do pensamento

antes da paixão

essa lâmina forjada na lua

perpendicular

o teu olhar libidinoso

a corroer-me por dentro

de um doce tormento

lembro-me depois de nós

de estarmos ali íntegros

nus e sós

sem mácula

os teus gritos

faziam parte da curva de água

no ruir das ondas

rastilho do esplendor

de todo o pecado

depois não ouvi mais nada

e fiquei cego

sei que não houve misericórdia

que algures aconteceu a nossa morte

e lembro-me de ter ressuscitado

ao teu lado

na coada madrugada

do céu riscado de uma barraca

no meu sonho não sei se dormias

profundamente

ou se tinhas partido

nunca mais deixei de te amar

nunca te poderia dizer

nunca te iria dizer

no medo de te perder

ao te acordar





Lisboa, 9 de Junho de 2012

Carlos Vieira


                                                         “Summerlove” Nathalie du Prel

Amores de Verão VI




Tudo aquilo

foi uma tragédia

morreu no entanto

como sempre desejou

nos braços da mulher amada

é certo que se esvaia

em sangue

foi seu último

e o mais belo Verão

ela  tinha os cabelos molhados

e não chorou uma única lágrima

já não o amava

ele só depois de morto percebeu

depois que ela já lhe tinha espetado

o punhal

cirurgicamente

no coração

com toda a ternura

fulminante

despojando-o de toda a dor

último gesto de amor

letal

era intolerável para ela

que o pudesse enganar

deu uns retoques na pintura

e no cabelo

e respirou

como se saboreasse a liberdade

desde há muitos anos

e entregou-se depois

às autoridades



Lisboa, 9 de Junho de 2012

Carlos Vieira

                                                                Andor Novak “Femme Fatal”