segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

No rasto do teu silêncio IV


A sua memória

à espreita atrás da cortina

é uma folha que se desprendeu

no súbito jardim de um olhar,

uma faúlha que propaga o incêndio

à árvore onde se colhia

o fruto da distância,

o desespero de amar,

agora ficaram apenas

a tua sombra,

as tuas frias cinzas,

agora, se houver longe

nada te assinala.

 

Lisboa, 30 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

                     “Le Silence de ta Voix Résonne Résonne Résonne” by Nadege Druzkowski

 

 

No rasto do teu silêncio III


 

 

Um murmúrio

subtil de cores,

a condensação do seu sorriso,

perante a silente órbita dos astros

a descreverem a sua nítida nudez,

uma história

um exemplo de serenidade.

E se por acaso treme?

Se não ignora

um arrepio inocente

ou talvez, a breve volúpia

da estrela cadente?

E se uma lágrima

Trémula destruir

a vertigem do esquecimento?

 

Lisboa, 30 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

                     Foto de Flickr “ Há momentos, em que o silêncio é a voz mais poderosa!

No rasto do teu silêncio - II


 

Poderia ser

um peregrino

ao abrigo do silêncio,

na véspera da chuva

devorando pontes,

ajoelhar,

de ouvido no chão

escutando em toda a terra,

o bater do coração,

raízes de flores

e pássaros soltando-se das trevas.

Desconhecer,

se o que sente

é o seu canto, a sua pulsação

ou a sua humanidade.

 

Lisboa, 30 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

                                             Foto de Flickr "Follow the voice of the forest"

domingo, 30 de dezembro de 2012

No rasto do teu silêncio


 

I

 

Caminha

em passo de fantasma

para não acordar

as sombras dependuradas

nos armários,

vais até ao fim,

incólume

à passagem do tempo

da dignidade.

Sem uma ruga,

nem uma lamento,

incansável.

Tão suave

na imortalidade de um momento,

não se sabe se respira,

se são os ventos ou prodígios

que o evocam,

se tem algo de selvagem

que morre

se lhe tocam .

 

Lisboa, 30 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira
Autor desconhecido

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Epidural


sonâmbulo
errando pelo meu meio-dia
em pelo

animal
humano nos bolsos no silêncio e no vazio
dos princípios

vagabundo
de miragens e ideias rarefeitas e mais não digo
dada a dormência do frio

foge-se ao confronto
às nódoas negras e ficamos na anestesia local
do desemprego

marginal
que adia a sua entrega e aguarda o seu imposto
na fila do medo

escolhe a contragosto
o recanto mais escuro e a barba por fazer
e as lâminas da brisa

o calor do jornal
a tinta que difunde o embrenhado perfume
emaranhados nas entrelinhas da crise

não pensar
desfrutar a paisagem estreita e acolchoada
que passa ao lado do espaço e do tempo

Lisboa, 27 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira

sábado, 22 de dezembro de 2012

Em aviso amarelo



barco açoitado no cimo da vaga
ali se ergue a desfraldada lua cheia
alma coroada num vendaval se apaga

fantasmas de nuvens em alucinação
nas árvores tremem a ave e a candeia
corre do abraço de afogado para o coração

do olho da tempestade foge um avião
na planície o homem e o hangar iluminado
apreensivos no cais para que se salve a ilusão

adivinham-se animais em redor no largo círculo
em sacrifício e nos caminhos do imolado
silêncio subleva-se a liberdade e o crepúsculo

Lisboa, 22 de Dezembro de 2012

Ontem à tarde, um rebanho...


Ontem à tarde, um rebanho de duas centenas de ovelhas invadiu o asfalto de uma estrada dos subúrbios, podia ter sido uma tragédia, quando aquelas começaram a tosar os veículos e os ocupantes encurralados. Depois, o pastor lá conseguiu encaminhar os automóveis e os ocupantes para os baldios, ali voltaram a ruminar a erva e o beco sem saída das suas vidas, os cães de guarda a morderem-lhe as canelas, as ovelhas prosseguiram rumo aos seus destinos, sintonizando na rádio outros balidos, perante a veemência dos cajados, felizmente, que tudo regressou à normalidade.

 

Lisboa, 22 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Dúvida pouco metódica

 

Há quanto tempo não via o céu?

Há quanto tempo não vejo o mar?

Hoje aquele chegou nas nuvens  

do pensamento profundo e pesado

o mar esse ficou-me ali a ecoar

nas mãos onde ficou o sal e o cheiro

do robalo que escolhi no mercado

ou talvez o problema seja da conta

a descoberto e do crédito mal parado

e a porra do peixe seja de viveiro

tudo isto se confunde no mar e no céu

da vontade que se mistura de desejo

aquilo não foi mais que um ar que me deu.

 

Lisboa, 21 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Debaixo da ponte


 

Olha a ponte

e atravessa-a

a seguir olha

para este lado

e regressa aqui

imperturbável

o rio vai correndo

sem sair dali

neste vai e vêm

morre de sede

atira-se da ponte

e o rio afoga-se

dentro de si.

 

Lisboa, 20 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

                                                 “Goodbye letters on the bridge” Glenn Brady

Humi-di-lhação


O cachorro,

seguramente vadio

entrou na praça

de madrugada

dirigiu-se à estátua

por instantes

alçou a perna e seguiu

o herói de olhar vítreo

ali ficou verde de raiva

e de “humi-di-lhação”

a um herói esquecido

até os cães lhes

mijam em cima

e não vamos falar

dos pombos.

 

Lisboa, 20 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                “A Metamorfose de Narciso” de Salvador Dali

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Gestos de amor breve


 
1.

Faísca

frágil flor

incandescente

eu te desconheço

golpe de asa

ou página efervescente.

 

2.

Pássaro de fogo

frémito

fulgurante

não te mereço

nunca te mereci

és o relâmpago

a que sucede

o meu inevitável

estremecimento.

 

3.

Estrela à solta

felina

vertiginosa

deixa-me apenas dormir

ou sucumbir

à altura

da tua febre.

 

4.

Teu olhar de metal

a vibrar de desejo

e de fulgor

e de ânsia

e de ternura

como te vou sobreviver?

que podes tu saber da morte

que perdura?

 

5.

Farpa

a rasgar o peito

a apunhalar a solidão

e a tristeza

que ainda assim resvala

de um vulcão

e cobre

no fim de semana

a imagem sépia do tempo

teu rosto.

 

6.

A faúlha

fez insurrecto o coração

e intactos o fósforo

a minha fogosidade

o conhecimento

lavra o fogo-posto

que devasta

o eco do teu nome

no mistério da floresta.

 

7.

Início da festa

sai-lhe da boca

a palavra inacessível

a sua língua em fogo

devoras-me as entranhas

no alto forno do silêncio

que tempera a alma

tu és tudo em que acredito

eu sou tudo aquilo

que de ti me fica.

 

8.

 

Tudo será breve

ou princípio de um fim

que se apaga

que nos foge

que reacende.

 

Lisboa, 18 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                           “Fire” por Madison Moore

domingo, 16 de dezembro de 2012

A vida por um fio


 

 

fio

armadilha de luz

breve descaminho da água

aconchego têxtil da esperança

última palavra solta na despedida

tronco paciente de tecer a ausência

hábil sortilégio de um ninho de pardal

abelhas anunciando a eternidade do mel

peixe que soçobra depois da dança cintilante

às mãos extraordinárias do pescador sem saber

que também nós somos marionetas vivendo o logro

lutando desesperados pelo engodo e amarrados à vida

por um fio

 

Lisboa, 16 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

                                                           “Peixe Encantado” de Nary Mistry

Escola Primária de Sandy Hook, Newtown



Chovia em Lisboa
e centenas de projécteis
fulminaram 27 vítimas inocentes
na escola primária de Sandy Hook
e nós caímos prostrados perante o horror
perante tão precoce conhecimento da morte
dos que ainda ensinavam
ou daqueles que ávidos aprendiam
a amar os mistérios da vida

dentro de cada um de nós cresce um monstro
vamos adquirindo armas e munições
e pontaria e licença para matar
nesta anónima Newtown da indiferença
de qualquer país
em que passeamos
o nosso desvelo na flor da vida
em que criamos os filhos que nos matam
e que nos morrem

neste moderno Far-west dos duelos
com os nossos próprios medos
aceitamos o jogo da violência
e germinam virtualmente
nos nossos corações e nas nossa mentes
mais jogos de estratégias,
de rifles e de pistolas
para nos defendermos da violência
e do olho por olho

vamos pois alimentando o monstro
enquanto construímos à nossa volta todos os castelos
e condomínios fechados
que nos distanciam do ruído esquelético da fome
e do pânico do roubo e das epidemias
aqui estamos
longe da vista
longe do coração

porém dentro de nós
concebemos o brutal
e o assassino
convivemos alegremente
com a loucura que nos invade
o paraíso artificial
numa manifestação cobarde
sem possibilidade de defesa
de nós próprios

a escola primária de Sandy Wook
é agora outro espelho onde observamos
a nossa morte
onde a respiração e as lágrimas
toldam agora a imagem
desta última tenebrosa aprendizagem
que nos entrou sem pedir licença
pela nossa casa a dentro.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira



quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O tigre e o sol




o olhar atento da fera

na penumbra

escutando o coração

da presa

a favor do vento

contra luz

o adeus das canas


foi ao meio-dia

em ponto

que o tigre foi um raio

fulminante

transpôs o horizonte

e o tempo


o sol é agora às listas

escorre-lhe

o sangue da jugular

entre bambus

um crepúsculo animal

de garras

e de fome saciada

de luz


Lisboa, 12 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira


Pintura de autor desconhecido

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Murmúrios, sombras e outros solstícios



Um prolongado silêncio aflito
na véspera de água
um grito

O lume brando perpendicular
ao voo da pedra
e do pardal

Os reflexos de um peixe-gato
são um piano de luz
e de espinhas

Naquele lugar inóspito a língua morta
no ventre do tempo
é apenas erva

Exausto percorre o país exangue
impunha a lâmina curva
e a triste lâmpada

O  instinto de sobrevivência
leva ao beco sem saída
o animal ferido

Lançados ao mar os restos mortais
só o secreto rumor da seiva
coincide no lamento

Uma vez a partir do suave declive
soltou-se um fruto seco
e o gesto subtil  

A história do esplendor das manhãs
feita de  fogo e flor de sal
e estampidos

A laranja que de manhã era de prata
o sol que lhe sorri nos lábios
após a palavra amarga

Uma porta que se abre arrastando-se
teu nome na minha boca
a quietude da maçã

Chega a noite com o mistério da tinta
teu perfume é sombra de vento
nos ombros nus.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira

                                             Lunar Eclipse / Winter Solstice por Barbara Kacice

sábado, 8 de dezembro de 2012

Incompreensível Rumo



 

pela orla precária um corpo de espuma

sulcos de pés descalços

de deusa

 

a brisa de ouro desdenhando o mar

o pente e o lenço na deserta

duna

 

barcos melancólicos ancorados na areia

uma monotonia de peixes

e ondas à sua espera

 

renda líquida de algas e plâncton na praia

um fulgor de sal e de pérola

no seu olhar

 

inflama-se o azul cobalto no seu peito

o relâmpago de um  grito e flor

pungente

 

ao longe a gaivota era um fumo branco

que lhe ia adejando um adeus

inconsequente.

 

Lisboa, 8 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

                                              The Young Woman at the Beach – Edvard Munch

 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Chove copiosamente em duas partes




I

De tudo

do dia

da chuva

da descrença

estamos encharcado até aos ossos.


Está tudo embaciado

as bátegas

as lágrimas

chovem no molhado

e aumenta o risco de “aqua planning”

e de recusa da realidade.


Os limpa pára-brisas

enlouqueceram

a imagem distorcida

ora se apaga

ora se acende

a realidade retorcida

da história.


Chove

pode haver

grandes inundações

constroem pequenas barragens

as populações

debaixo de chuva.


II

A chuva cai

e a noite também.

Merda,

perdi a chave do carro

no meio da relva,

afinal a chave

caiu na levada.

A chuva e cinco centímetros

fazem toda a diferença.

Com um peixe de rio

que a chave engoliu

vou abrir agora a porta do carro.

Cada vez mais as pessoas

são chaves,

são peixes

fora de água

que passam perdidas

esquálidas

pelo intervalo da chuva.


Lisboa, 6 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira


“It’s raining”  de autor desconhecido

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Nocturnos urbanos



 

I

 

Poderia estar aqui emboscado

a ouvir tudo o que a noite

nos esconde

ou nos trás.

O que nos contam

os insectos breves

na sua voz mínima.

Sintonizando

de antenas no ar

nas longínquas frequências

os passos de fantasma

dos que nunca dormem

dos que nunca se ouvem

dos que ninguém ouve.

 

II

Poderia ser o cão a ladrar

daqui à lua

como quem atira um verso

que lhe devolve em osso.

Se para responder

se aproximasse

era lançar-lhe o laço

era prendê-la a um pinheiro.

Só a libertaria se ela aqui

a pé juntos jurasse

nos deixar

todo o seu silêncio de prata

com que de longe

nos provoca

e os amantes infelizes

passariam a destilar

um luar de resina.

 

III

 

Poderia estar aqui

a ouvir o motor de automóvel

que se afasta

e outro que se aproxima

as luzes que se perdem

outras que me ofuscam

o piso escorregadio

e a  curva da solidão

também rima.

 

IV

Poderia deixar-me aqui

tolhido pela noite que arrefece.

Poderia começar a tremer de raiva  

numa gratuita manifestação

de estátua

que bate os dentes de frio.

Poderia tornar-me no mais humano

dos seres

que por nenhuma causa

desistiu

só de fome

se deixou vencer

numa caixa de cartão.

 

V

 

Poderia estar aqui acossado

por este rumor de reflexos

da contradição

dos medos

de cidade adormecida

e deixar-me seduzir

pela luz álgida dos candeeiros

que se cruza indefinida

na fluorescência

das insónias

dos vapores do alcóol

e da razão

do preço da electricidade

no on/off da vida

 

VI

 

Deixar-me atrair

ao mais negro beco

onde lampeja

a lúcida discrição

das lâminas

e os mais desprotegidos

com mais ou menos luta

se apagam

encontrando por fim

a paz absoluta.

 

Lisboa, 5 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

 

 

domingo, 2 de dezembro de 2012

Prognose Póstuma



 

Estes tempos

e este frio

impregnam-se

na epiderme.

Estaria sempre

preparado para a morte

depois que a névoa

foi conquistando

o seu rosto.

Não pode faltar

o último suspiro

de alguém que desiste

ou um pássaro inábil

a sobrevoar as hortas.

Vai permanecer

uma fugaz memória

e nela a tristeza  

pode ser apenas

um assunto doméstico

a timidez

de uma pedra fria

ou pó que assenta

sobre a história.

Tudo se resumirá

a uma única estação.

Lisboa, 2 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

Citação de Friedrich Nietzche

Pintura “Morte e vida” de Gustave Klimt

sábado, 1 de dezembro de 2012

No teu corpo o horizonte


                                                                                        “Quero uma vida em forma de ti”

                                                                                         Boris Vian

 
O horizonte

é um sabre suspenso

sobre a cortina diáfana

do seu corpo

onde se tece o gume ávido

e eloquente  do desejo

que aflora

na vertigem da sua pele

que transpira um veneno

de murmúrios e de silêncio

intransigente

a chuva cai copiosamente

ela soergue-se

de um devaneio.

 

Enquanto mordes os lábios

e a lâmina a trespassa

alucinante

um incêndio

destrói veladamente

a floresta onde te prenderam

no pensamento

esse punhal suspenso

sobre o seu corpo

horizonte que lhe foge

ou círculo de fogo

que o cerca

da sua ausência.

 

Lisboa, 1 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira